quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Cego

Dentro de mim, o tempo parece ter parado. E eu tropeço em cada minuto que ainda resta. Meus medos chamaram meu nome e eu respondi. Há um brilho escuro e opaco dentro dos meus olhos, um aperto sobre-humano na minha garganta, um pouco de sangue em meus pulmões. Minhas células que ainda estão vivas e meus neurônios que ainda respondem a algum sinal elétrico tentam se desfazer de mim, ser livres, encontrar abrigo e paz em qualquer outro lugar, menos nesse corpo complexo, colapsado, dolorido.

Eu perdi minhas outras guerras com tanta honestidade que cheguei a acreditar que nenhuma outra batalha pode ser ganha depois daquelas. E percebo que estou lutando sozinho quando olho ao meu redor. Não há um corpo ou uma alma que vai segurar minhas mãos ou me dar um abraço para que eu possa chorar o quanto eu precisar. Não há nenhuma palavra de afago, de consolo, de compreensão.
De repente, tudo parece estar sendo resolvido no grito, mas eu não quero gritar. Não quero pedir. Não quero implorar.

Então eu desisto aos poucos. Começo pelas letras que escrevi. Abro minhas mãos e deixo aqueles dedos serem livres para agarrarem o que quer que estejam procurando. Respiro fundo e tento absorver o pouco de oxigênio que sobrou depois de tantos soluços, tantas expirações, tanto afogamento. Tateio as paredes procurando por uma saída de emergência, porque tudo ficou tão escuro subitamente. É como se não houvesse mais volta.

Mas se houver, eu vou descobrir, e eu vou correr para fora dessa porta sem olhar para trás. Sem olhar para as peças que ainda ficaram no chão por não se encaixarem. Vou pular de um precipício, vou fingir que tenho asas, vou voar para longe disso tudo.

No entanto, percebo que a verdade está por trás dessa porta, com todas as respostas das perguntas que não tive coragem de fazer. Vejo a sombra de seus pés se movimentando na fresta entre o chão e a porta. Tenho medo do momento em que ela decidir colocar suas mãos frias na fechadura e abrir o que me separa da luz cegante da realidade.

Mas, enquanto isso não acontece, é uma longa e torturante espera. E eu não sei se eu quero saber como isso acaba.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Atrás das grades


Seu primeiro habitat natural foi um berço rodeado de grades para que você não caísse durante a noite e se machucasse. Depois disso, veio a escola - um lugar no qual você passava seis horas por dia preso, acorrentado a uma cadeira, ouvindo outra pessoa ditar quais eram as coisas que você deveria fazer para ser bem-sucedido quando crescesse e, automaticamente, feliz. Você sobreviveu ao ensino médio e é provável que hoje passe horas dos seus dias ainda preso: dentro de uma sala na universidade ou em alguma empresa. E, nas horas vagas, nos sentamos diante de telas que nos passam uma mensagem extremamente clichê: a felicidade está dentro de um relacionamento amoroso. Teoricamente, só assim poderemos ser felizes para sempre.

Segurança. Sucesso. Felicidade. Amor. Estamos sempre procurando todas essas coisas, parece ser o objetivo principal das nossas vidas desde que nascemos. Por isso, nos colocam em berços, em escolas, diante de filmes e de livros que nos enfiam goela abaixo grandes mentiras. O resultado disso não poderia ser mais desastroso: nenhum de nós está feliz em hipótese alguma.

Porque o berço te fazia gritar para sair dele. A escola era um tédio. O escritório é um campo de guerra. E o amor, ah, o amor... Ninguém quer viver sem ele. Ninguém quer acordar um dia e descobrir que está sozinho, que não haverá uma mensagem de "bom dia" esperando na tela do celular, que o ingresso do cinema vai ser para uma pessoa só, que a virada do ano não vai ter beijo-da-sorte.

E quando finalmente encontramos alguém, enlouquecemos. Esquecemos completamente de quem somos. Moldamos uma vida ao redor daquela pessoa, fazemos planos para o futuro, acreditamos que há apenas um mundo para ser visto e conquistado. Você pode chamar isso de felicidade, mas se analisar profundamente, descobrirá que tem outro nome: medo. Estamos morrendo de medo da perda, do frio, das incertezas que um relacionamento traz.

Estamos morrendo de medo porque estamos presos. E, como um animal criado em cativeiro, talvez não saibamos sobreviver caso as grades caiam, caso precisemos encarar o mundo sozinhos, viver apenas da nossa própria companhia.

Talvez nunca estamos de fato felizes porque insistimos em procurar pela felicidade dentro de gaiolas: em anéis de compromisso, em carteiras assinadas, em resultados de vestibulares, em prisões disfarçadas de habitat natural. Olhe ao seu redor: nenhum ser preso dentro de uma jaula está feliz.

Há um momento na vida de todos nós em que é preciso aprender a caminhar com as próprias pernas. A honrar as asas que todos nós temos. E entender que o mundo é grande demais para aprisionar-se em partes tão pequenas dele. O céu é mais seguro que o chão. O voo é mais empolgante do que as correntes. E a liberdade é o único estado de espírito em que podemos ser quem somos de verdade.


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Previsão do Tempo

Se você fizer uma lista comparativa entre suas expectativas e suas realidades, se surpreenderá com um resultado cruel: as coisas nunca acontecem como as planejamos. Chove no dia da festa, sua calça rasga no caminho de um evento importante, um amor acaba quando você pensava que iria durar para sempre. A previsão do tempo anunciava chuva, mas não caiu uma gota. O relacionamento de quase dez anos de alguém que eu conheço acabou em um piscar de olhos. Situações promissoras na minha vida se provaram fiascos. Pessoas nas quais eu pensei que pudesse confiar mal lembram meu nome hoje. E eu sempre acordo na melhor parte de um sonho bom.

Isso significa que, no instante em que você delega algo para o acaso, suas chances de se decepcionar são enormes. Contamos com nossos planos, acreditamos que eles serão seguidos à risca, escrevemos o roteiro perfeito para nossas vidas. Mas nos esquecemos de adicionar o fator fundamental para tudo: o imprevisto. E a vida acontece em função dele.

E, no final das contas, quantos de nós temos um plano B ou C? Porque, e se você for pego de surpresa no meio do caminho, nas estradas desertas da vida, e depender apenas do que você tem na bagagem para se virar? E se você acordar um dia e descobrir que todos os seus planos foram levados pela enxurrada durante a noite? Você conseguiria sobreviver?

Praticamente nada nessa vida é garantido. As placas que insistimos em pintar com as direções certas muitas vezes estão mal posicionadas e nos levam a nada mais do que ruas sem saída e muros altos. Diante disso, é importante fazer o menor número de planos possível e, principalmente, moderar a velocidade com que seguimos em direção a eles para evitar o choque brusco.

É melhor aproveitar o que você tem enquanto você o tem, sem se preocupar com quanto tempo ainda terá, ou com que rumo aquilo irá tomar. Enquanto a tempestade não começa. Enquanto nada esteja rasgado. Enquanto seu coração ainda bate por aquilo. Porque, no momento em que as coisas se vão, elas se vão para sempre. E a única garantia que temos na vida é a de que hoje não vai durar muito tempo.

O que quer que aconteça

O que quer que aconteça, eu sempre vou me lembrar do seu sorriso. Das marcas das suas mãos que ficam no ar. Do cheiro que sai do seu pescoço e se imprime na minha pele. Do sol que nasceu e só nós dois estávamos olhando. Da sensação de estar em casa dentro de um abraço seu. Dos planetas alinhados dentro dos seus olhos. Da órbita que meu coração assumiu desde aquele dia.

A calma na tua voz sempre envenenará a minha loucura, o que quer que aconteça. O caos será uma linha reta e racional e o chão estará macio debaixo dos meus pés. Eu vou usar meu melhor sorriso, minha melhor voz, minha melhor tonalidade de aura. Nada vai me escurecer enquanto o tempo trouxer você.

Os dias passarão e eu me perguntarei se minhas palavras foram justas. O gosto na minha boca denunciará a sua presença. Os minutos sufocarão cada medo e cada fantasma. A leveza da sua pele amaciará todos os meus pesos. As letras se acumularão dentro de mim e, quando for demais, vazarão em forma de meias-verdades porque eu não sei te dizer tudo o que eu penso e sinto sem te assustar. Mas, o que quer que aconteça, eu encontrarei formas de te fazer ver.

Respiro profundamente quando me deito e sei que meus olhos se abrirão para um novo dia. Os mapas que eu andei traçando me trouxeram até aqui. As luzes que piscam nos faróis dos carros indicarão o caminho quando eu estiver perdido. Talvez você tenha que ir, talvez doa, talvez eu esteja me precipitando na beira do abismo. Mas, o que quer que aconteça, eu vou me lembrar de você.

O que eu quero que aconteça não está em minhas mãos, e eu vou presentear a vida com esse dilema. E, o que quer que ela decida, eu estarei aqui.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cronômetro

O medo é a pior parte. De olhar para trás e para frente e ver apenas pássaros mortos no lugar de um céu habitado de cores. Jurei para mim que não estaria neste lugar de novo. Que não rolaria mais um segundo na cama por causa disso. Que não machucaria meus braços por causa do medo. Que respiraria fundo e diria aquelas coisas que eu disse para mim quando estava limpo, curado dessa dependência que eu acabei criando quando os primeiros olhos se abriram para os meus.

Mas minha cama está cheia de pedras e meu estômago rejeita qualquer tentativa de sustento físico. Aquela velha toxina somatizada volta a correr em minhas veias e não há medicina que me cure disso. Nem mesmo a mulher que eu pago para me ouvir todas as semanas tem uma resposta, e eu acredito que essa seja a pior das aflições: a falta de respostas, de propósitos, de explicações. A tela do celular está escura, o led que anuncia as respostas não pisca, e foram inventar essa bendita confirmação de que a pessoa sabe o que você tem a dizer, o que não passa de uma confirmação profunda e cruel do silêncio e do eco.

Um número incontável de estrelas passa pela minha cabeça diariamente, mesmo (e especialmente) quando eu não estou prestando atenção nelas. A lua que movimenta as marés ajuda a produzir o vento que refresca uma primavera tão abafada quanto as minhas palavras. A gravidade me puxa para o chão quando eu não estou esperando. O Sol nasce e se põe diariamente com a mesma indiferença que me assombra nas pessoas. E mesmo assim, mesmo sendo testemunha do movimento da vida e das voltas do mundo, nada me prova que o tempo não tenha voltado e parado, que as coisas mudaram mas não continuaram sendo exatamente iguais, que meu cérebro transforma a realidade em uma linha cronológica eficiente.

E quanto tempo eu tenho? Se o cronômetro que dedos maldosos acionaram no momento daquele primeiro beijo conta os minutos restantes para meu colapso, quantos segundos eu ainda tenho antes que o agora inevitável desastre aconteça novamente?

Eu pensei que a vida fosse uma cachoeira na qual você lança as coisas e elas nunca mais voltam. Mas, depois de tanta água fria batendo em minhas canelas, eu percebo que a vida é um oceano gigante e que as coisas têm essa mania revoltante de voltar para você depois que você as lança e, no momento em que você pensa que as tem, o oceano as puxa de volta.

Nada que vem de um mar de imprevistos pode ficar para sempre. E cada passo que você dá para tentar segurá-la é uma forma infalível de se afogar.

sábado, 1 de novembro de 2014

Fantasmas


Dormir nunca foi a tarefa mais fácil do mundo para mim e, embora hoje eu tenha motivos razoáveis para isso, quando eu era criança, minha insônia tinha a ver com meu medo de fantasmas. Eu ficava deitado imóvel, mesmo com o abajur aceso, e eles tomavam conta da minha imaginação. Era como se meu medo não fosse apenas medo, mas um tipo de expectativa: eu sabia que eles iriam aparecer a qualquer momento, e ficava apenas deitado, coberto até o último fio de cabelo, esperando por isso.

Eles demoraram um pouco para se manifestar. Não foi na noite em que eu tinha seis, oito ou doze anos que isso aconteceu. Foi alguns anos depois, quando eu já era grande demais para temê-los. Hoje eu tenho vinte e dois anos, e qual não é minha surpresa quando percebo que estou rodeado por eles?

Sem que eu tivesse tempo para me esconder, meus fantasmas apareceram em todas as partes. Nas fotografias que eu nem lembrava mais que existiam. Nas músicas que deixei de ouvir há algum tempo, mas que sempre voltam a tocar quando não estou esperando. Nas tatuagens que fiz em meu corpo - cada uma delas é um fantasma. Nos sonhos loucos que meu cérebro insiste em exibir em sessões especiais. Nos números de telefone que não consigo deixar de saber de cor. Nas vozes dentro da minha cabeça. No jeito que eu falo, que eu acabei aprendendo com alguém e nunca consegui desaprender. Na caixa que eu guardo e que está cheia deles, em forma de cartas, passagens de ônibus, ingressos de cinema e outros suvenires.

E, ao contrário do que eu imaginava naquelas noites há mais de uma década, esses fantasmas nada têm a ver com pessoas mortas. Hoje, com um discernimento consideravelmente maior, consigo entender que meus fantasmas estão vigorosamente vivos. São pessoas que ainda levantam-se de suas camas todos os dias, vão para a faculdade ou para o trabalho, eventualmente assistem a algum filme no cinema - de vez em quando, ao mesmo filme e na mesma sala que eu, embora em sessões diferentes. Tem algo mais fantasmagórico do que isso?

O que me assombra aos vinte e dois anos não é o fato de que os mortos podem retornar ao nosso mundo em formas azuladas e nebulosas, mas a possibilidade de que algumas pessoas vivas cruzem meus caminhos, em carne, osso e desprezo; de que elas sequer se lembrem do meu nome em alguns anos; de que suas vidas sigam sem mim; de que eu seja enterrado vivo por elas e não tenha o direito de assombrá-las depois, exigindo explicações, demandando atenção e lembrança.

Cada pessoa tem fantasmas que gostaria de exorcizar de sua vida, e aqueles pelos quais acaba criando respeito, amor e/ou obsessão. De qualquer forma, o problema é que não há oração, mantra ou simpatia que os mantenham longe de nós. Quem tem um coração batendo no peito carrega a predisposição a enxergar fantasmas. Pare por alguns segundos e olhe ao seu redor. Quantos deles você consegue ver?

Eu disse que minha insônia atualmente não tem nada a ver com fantasmas. E eu não poderia estar mais errado. A diferença é que agora eu não tenho que esperar: eles sempre aparecem. Altos e claros.

"Band-aids não curam ferimentos de balas
Você pediu desculpas só para constar
Você vive assim, você vive com fantasmas."
- 'Bad Blood' - Taylor Swift.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Física

Eu sempre odiei física, mas tirava boas notas no colegial, mesmo sem estudar. Não era difícil para mim calcular a velocidade média, encontrar padrões de tempo, medir o deslocamento. Eu que sempre estou me perguntando se não estou indo rápido demais, eu que estou sempre preso às horas que faltam e às horas que passaram, eu que me desloco dentro de mim o tempo todo. Física era fácil. Eu sou um Einstein das emoções, o que é irônico, dada a desfuncionalidade da minha inteligência emocional.

Resiliência. É um termo da física que as pessoas aprenderam agora e está em tudo que é lugar. Outro dia vi uma entrevista sobre isso. Acho que foi na Fátima Bernardes. Mas é claro que ninguém estava falando de física na Fátima Bernardes às onze da manhã. O tema era superação, e por isso esse termo vem da física: a ideia é um elástico que acumula toda a energia sem sofrer modificações plásticas. Depois de ser puxado até seu limite, o elástico devolve a energia para o objeto e volta ao seu formato normal. Engraçado, né? Usam isso como exemplo pra falar da gente. Da gente que sente dor, da gente que sofre, da gente que perde coisas, da gente que se estica até o máximo que consegue sem arrebentar e, depois disso, nunca mais consegue ser o mesmo.

Eu nunca mais voltei ao meu formato inicial quando você me disse seu primeiro oi. E você sabe o quanto eu me estiquei para tentar te alcançar. Para tentar envolver meus braços ao seu redor, mesmo estando longe, só para te dar um pouco de apoio e carinho. Eu que fui lançado em trânsitos reais e imaginários só pra te encontrar. E quando eu chegava aí, física ou imaginariamente, você soltava o elástico, lembra? Eu voava milhares de quilômetros por hora, e sei disso porque eu fui um bom aluno em física: o deslocamento era enorme dentro de um intervalo de tempo tão curto. Em um instante, eu não estava mais nem mesmo dentro de mim.

Não, é claro que eu não voltava ao meu formato original. Quem olhar com cuidado para meus braços saberá disso. Tem marcas do elástico que você soltou em vários lugares. Cicatrizes que vão embora da minha pele em pouco tempo, mas isso é um assunto da biologia, e não da física. A física afirma: a força foi grande demais para não ter deixado nenhuma marca, o atrito foi muito intenso para não ter causado nenhuma queimadura.

E você pode achar que eu não sinto nada, que é tudo muito superficial e que não me atinge de nenhuma forma, mas isso não é verdade: eu sinto, sim. Quando leio algo que você escreveu, quando ouço alguma música que me lembra você, quando uma foto sua invade algum dia útil sem me pedir licença, eu sinto um peso enorme, e é um peso externo, físico mesmo. Parece estar amarrado no meu queixo, porque ele começa a puxar meu rosto pra baixo. Primeiro eu sinto perto da gengiva inferior, uma espécie de pressão sanguínea pulsante. Depois, meus lábios começam a curvar-se para baixo, porque a gravidade é imbatível, e eu fico com uma expressão de bobo no rosto.  Aquela expressão que, quando as pessoas veem, dizem: "Desmancha essa cara". (É engraçado alguém dizer isso para quem já está sentindo a cara desmanchar igual areia.)

Quando olho para trás, para o momento em que você puxou o elástico pela primeira vez, eu entendo que eu já sabia disso tudo. Todos os números estavam em seus olhos. O enunciado era bastante claro no seu jeito de falar. Sua melancolia indicava o x da questão. E isso me faz entender o motivo pelo qual eu odiava física e matemática: eu não suporto coisas exatas. Não consigo lidar com o fato de ter os números, os dados, os sinais na minha mão, juntá-los e encontrar um resultado definitivo. Tudo o que é exato me assusta, e a verdade é exata, precisa, imutável. Então eu preferi deixar o problema de lado, fingir que eu não sabia resolver, que não estava entendendo a pergunta, que não via os dados na minha cara, arriscar ficar com uma nota baixa com você.

Agora eu estou em recuperação. Não há resiliência que vá se aplicar a mim, e o Einstein ou a Fátima Bernardes que me perdoem. Mas eu me recuso a voltar a um tamanho tão pequeno de mim mesmo.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O beija-flor insistente

História melosa do dia que eu não podia deixar de compartilhar: o vizinho de uma amiga tem um daqueles bebedouros de beija-flor que as pessoas penduram na varanda de casa com água e açúcar para alimentar os pássaros. Em poucos dias, o bebedouro se tornou um verdadeiro point desses bichinhos até que, por algum motivo, o chef das aves parou de fornecer alimento. O bebedouro secou, os pássaros continuaram vindo até que entenderam que dali não sairia mais nada e desistiram. Todos menos um.

Todos os dias, faça chuva ou faça sol, o beija-flor insistente volta ao bebedouro. Senta-se na beiradinha de plástico, pula para o lado, depois para o outro, voa ao redor procurando por alguma gota de água açucarada nas flores artificiais do objeto. Depois voa, em busca de fontes de alimento abastecidas, mas uma coisa é certa: na manhã seguinte, lá está o passarinho, em uma nova tentativa frustrada.

"Por que será que ele faz isso?", minha amiga perguntou. "Com tanta flor por aí, com tanto bebedouro em outras casas, por que ele volta justamente nesse, mesmo sabendo que não terá nada ali?" A não ser que você consiga se comunicar com pássaros, é difícil encontrar uma resposta certa. Mas, sendo humanos, não é impossível imaginá-la: todos nós já fomos um beija-flor insistente algum dia.

Você sabe que não vai adiantar ligar para aquela pessoa, tentar puxar assunto, mandar uma mensagem ou sequer pensar nela. Ela não tem mais nada açucarado para te oferecer. Há outras pessoas melhores, mais interessantes, mais doces ao seu redor. Mesmo assim, você continua insistindo naquela, porque consegue se lembrar claramente o sabor que ela proporcionava e que, para você, era diferente de qualquer outro.

Ou, então, você nem chegou a provar nada de uma pessoa, simplesmente porque ela é tão seca e vazia quanto um bebedouro de pássaros esquecido por seu dono. Você a avistou de longe enquanto voava por aí, encantou-se pelas cores vibrantes das flores que ela tem e, mesmo depois de ter descoberto que eram artificiais, continua voltando a ela, esperando que algum dia ela possa ter um pouco de doçura para você.

Enfim, são incontáveis os casos em que nos comportamos exatamente como o beija-flor do vizinho da minha amiga. Mesmo sabendo que nada vai sair de lá por mais que a gente continue insistindo naquilo, a gente continua voltando, e tentando, e enfiando o bico, e dando voltas e indo embora frustrado, só para voltar mais tarde.

E como acaba essa história (não só a do beija-flor, a sua também)? Simples: ou você (e o beija-flor) insiste tanto que, em algum momento, haverá água com açúcar para saciar sua sede, ou você morre de sede (o beija-flor não, porque ele acaba agindo por instinto e procurando por outras fontes de alimento).

É assim que as coisas são. Uma hora, é preciso aceitar que não dá para esperar nada de um recipiente vazio e decidir voar para outras flores, encontrar fontes mais prováveis de alimento e, principalmente, de vida, antes que seja tarde demais.

Mas enquanto a gente não se dá conta disso, ah... Como somos irracionais e insistentes.

sábado, 4 de outubro de 2014

A ilha

Parado como um guarda, fiscalizando minunciosamente cada rosto que surgia, cada corpo da sua altura, cada sorriso largo em contraste com olhos semicerrados. Mas quem eu estava guardando, afinal? Eu mesmo. De braços cruzados, tentando controlar o tremor que subia por meu corpo e que pouco tinha a ver com o ar-condicionado no mínimo. Era só o medo, mesmo. Esse velho amigo. O medo do que você iria pensar sobre meu cabelo estranho, sobre meus olhos fundos margeados por manchas roxas de anos de privação de sono, sobre minha boca desidratada e sobre a camiseta amassada, a melhor que eu encontrei de última hora para a ocasião. O medo mudou quando o tempo foi ficando curto, os passos deveriam ter ficado velozes, os elevadores e as escadas rolantes não traziam ninguém que sequer lembrasse você.

Era claro que você não apareceria. Não é culpa sua não ter aparecido, porque eu sabia. Sabia como sei que qualquer palavra que eu te disser vai se chocar contra a sua armadura, fazer um barulhinho metálico e cair no chão lentamente, como uma mosca quando se choca em uma lâmpada. Sei que nunca vou poder habitar o escuro dentro de você, nunca vou ser capaz de iluminar um pouco seus olhos, nunca vou conseguir penetrar sua pele limpa com qualquer sentimento que eu ouse ter.

E você pode me pedir para te provar, que eu vou ter argumentos infinitos a meu favor. A começar pela chuva, que me faz pensar em você, mas que te causa talvez um pouco mais do que uma melancolia agridoce. Depois, tenho o tempo e as circunstâncias para comprovar minha conclusão. E as palavras que sequer ecoaram em seu cérebro, as confissões que não elevaram seus batimentos cardíacos a nenhuma batida a mais, alguém saberia se estivesse medindo. E eu não estava. Porque acreditava que apenas falar era suficiente, como você iria lidar com tudo aquilo era um problema seu. O importante é falar, é o que dizem nos filmes, nos livros e nas músicas. Fale. Seja bravo. Tenha coragem. Fale a verdade. Mas a verdade que ninguém te conta é que o som não se propaga no vácuo. Não há palavras que preencham um vazio autoinfligido. Não há número que multiplicado por zero tenha um resultado diferente de zero.

E, por falar em números, foi uma hora e quinze, se você quer saber. O relógio me contou isso,e o olhar ansioso da operadora de caixa que havia reservado seu ingresso, e as pessoas que iam chegando e se encontrando e se desculpando pelo atraso com seus amigos. Eu era uma ilha, no meio de um mar de gente em movimento, em sorrisos, em perfumes, em felicidades talvez efêmeras, mas ninguém poderia negá-la. Eu era uma ilha tentando ser preenchida por um náufrago e, ao mesmo tempo, eu era um náufrago, rezando para que você aparecesse, para que eu tivesse um solo firme de certeza de que você teria ao menos a consideração de aparecer, de cumprir uma promessa, de se desculpar por todas as quebras. Eu sei como é isso porque não foi a primeira vez que eu me senti assim, mas você não sabe, eu tenho certeza disso, e eu acho que você nunca vai saber.

Você nunca vai saber, porque se você diz a alguém que estará lá às nove, às seis da tarde a pessoa está olhando no relógio. Às quinze para as sete, ela está debaixo do chuveiro, deixando o sabonete fixar-se na pele mais do que o normal. O shampoo escorre pelos cabelos como cera derretendo, e a pessoa se arrepende por não ter ido cortar o cabelo naquela semana, se ao menos ela soubesse que iria te ver... Quando são oito horas, ela está provando diversas roupas, tentando encontrar dentro do armário a peça que esconda com mais eficácia o medo, a insegurança, o nervosismo e a ansiedade. Então ela escolhe uma roupa confortável e bonita, arruma o cabelo que ela não cortou com o máximo de cuidado possível, mas o spray acabou, droga, o spray acabou, ele vai gostar menos de mim com esse cabelo, a pessoa pensa. Como se fizesse alguma diferença. Então ela pega o carro e sai correndo pela cidade com medo de se atrasar, mesmo sabendo que é cedo. Ele já deve estar lá, ela imagina quando chega. Sobe duas escadas, arranhando o corrimão de borracha como se tentasse depositar ali todo o seu pânico. E te espera. Até que as pessoas entrem na sala. Até que o filme comece. Até que o cheiro de pipoca comece a se dissolver no ar até desaparecer, porque não tem mais ninguém comprando pipoca, não tem mais ninguém comprando ingresso, não tem mais ninguém esperando por ninguém. Só essa pessoa. Olhando ao seu redor, fiscalizando qualquer rosto que ouse aparecer na frente dela, e nenhum deles é você, e nenhum deles será você, porque você nunca vai saber como é isso, você com seu cabelo perfeito, você com seus olhos doces, você com seu jeito engraçado de falar, você com sua risada gostosa, você com seus quase dois metros de autossuficiência e orgulho.

Eu ainda estou lá, de certa forma, e isso só aumenta a sensação que eu tenho de ser o maior idiota do universo. Ainda estou lá, plantado como uma árvore antiga, esperando que você apareça. Ainda estou lá tentando resolver uma equação com as horas, te encaixando no lugar das incógnitas, um x enorme, vermelho, que eu fico tentando decifrar o tempo todo, esperando que eu vá encontrar uma resposta a qualquer momento.

Mas a verdade é que eu nunca vou saber a reposta pela qual você não apareceu. E você nunca vai me salvar daquele mar de gente que ainda passa por mim, e eu também nunca vou poder salvar alguém que prefere pintar sua própria imagem com cores tristes do que abrir os olhos para a luz colorida que pode entrar pela janela se você parar para abrir as cortinas um instante que seja. E a mais dolorosa de todas as verdades é que eu vou ser sempre uma ilha deserta, cheia de pedras e de buracos, cheia de mensagens em garrafas que não dizem absolutamente nada, e no final da noite, inundado por um mar de questionamentos e aflições, ninguém vai me salvar de mim.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O frio nunca me incomodou


Quando o primeiro sinal da tempestade apareceu, uma felicidade indescritível me preencheu. Fazia muito tempo que eu não sentia aquilo. O frescor de rajadas fortes e novas. A luz dos relâmpagos iluminando meus olhos. A sensação de que algo muito grande estava começando.

Eu senti isso dentro do meu peito ao mesmo tempo em que o celular vibrou. Era uma mensagem. Dizia coisas que eu não compreendi no momento, e as quais eu não entendo até hoje. A energia caiu por causa da chuva, no exato instante em que eu fiz uma pergunta, e eu fiquei no escuro, esperando por uma resposta, tentando prevê-la, criando planos e me sentindo patético.

É difícil entender por que a gente continua fazendo isso, mesmo depois de tantas tempestades. Nós sabemos exatamente o que elas fazem: arrancam tudo do lugar, deixam um rastro de sujeira e bagunça, danificam as paredes mais altas que você ergueu para se proteger, fazem com que as pessoas se escondam, fujam, procurem por abrigo.

Mas a verdade é que eu nunca fui de fugir de tempestades. Pelo contrário: eu pareço correr para elas, implorar por elas. Quando chove, em vez de ficar dentro de casa ou procurar por um lugar seguro, seco e quente, eu insisto em sair na chuva, me entregar ao frio, ao vento indomável, às gotas afiadas que atingem meu rosto com força. Tenho a impressão de que é isso que faz com que eu me sinta vivo: o frio, o medo, a dor, o desespero. Você sangra apenas para saber que está vivo, é o que diz uma música, e eu não poderia concordar mais.

Fazia tempo que eu não via uma tempestade dessa acontecendo dentro de mim. E isso me assusta tanto quanto me fascina. Sinal de que eu não morri nas outras. Que, apesar de toda a destruição e de todo o caos, minha alma ficou intacta. E, embora meu corpo inteiro diga "Corra!", é aqui que eu vou ficar. No meio da tempestade. No olho do furacão. Porque, quando os primeiros raios de sol começarem a surgir de novo no meio das nuvens, eu vou ter a confirmação que faz qualquer tempestade valer a pena: eu sobrevivi mais uma vez. E que venha a próxima.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

It's just medicine



Eu não sabia o que dizer a princípio. E havia um tom de chocolate meio-amargo misturado em seus olhos doces, uma irresistível tentação emoldurada por cílios curtos, mas bem desenhados, delineados em um ângulo perfeito com o seu sorriso que poderia dizer tantas coisas, assim como eu.

Agora você me chama de louco e eu rio por dentro, mesmo que nunca tenha gostado dessa definição. Existe um meio-termo para tudo, eu percebo. Eu que sempre vivi além da borda, derramando mais do que eu conseguiria aguentar. Eu que nunca encontrei uma cura definitiva para algo tão instável que é o que eu sou. Eu que sempre tive medo do escuro, percebo que estou tateando nele, procurando por portas que possam dar a algum lugar da sua alma, janelas que possam arejar um pouco do rarefeito que queima dentro do seu peito.

Você poderia ser o que quisesse, e eu realmente não iria ligar. Eu gosto de todas as tonalidades que você apresenta, do púrpura ao azul-claro, do céu rosa ao verde da aurora boreal, do negro que tinge seus cabelos ao branco profundo e puro que ilumina seu sorriso.

Então você me fala de dor e eu entendo cada agulhada dela. Cada junta que range quando algo parece pesado demais. Cada droga que puxa nossa alma sem a nossa autorização. Conheço a dor como uma velha amiga, eu que fui despido da pele que me protegia dela. Sei o que você sente quando fala da dor. Sei o que você sente quando fala de medo. E me pergunto, em algum lugar dentro de mim que eu geralmente não ouso estar: qual seria o seu remédio? O que poderia curar isso em você?

Se não o risco, se não as penas com as quais você monta suas asas, se não o som de outro coração batendo próximo ao seu, se não a chuva que aguarda para cair, onde estaria - por trás dos teus medos e do teu sorriso, por trás da introspecção charmosa e da rispidez agridoce das tuas palavras - um mapa que pudesse te ajudar a escapar, e que pudesse me ajudar a te encontrar no meio do caminho?

São apenas remédios, afinal de contas. Apenas atalhos para amenizar as dores. Elas vão estar lá o tempo todo, por mais que você tente ignorá-las. Mas eu diria que eu seguraria sua mão quando você a sentisse e deixaria você esmagar meus dedos; que eu te salvaria de um temporal ou me molharia na chuva com você; que eu estaria do seu lado e impediria que a enxurrada levasse embora o que você tem de melhor; que eu manteria meus olhos abertos para que você pudesse fechar os seus.

Então eu abri minha boca para dizer cada uma dessas palavras. Eu respirei fundo, mas o silêncio me engasgou. Eu não soube o que dizer a princípio. Mas agora eu sei.

Agora você sabe.

domingo, 21 de setembro de 2014

O Suficiente


"Fala quando estiver bom", dizia alguma tia sua quando estava servindo refrigerante em um copo. O líquido começava a escorrer e, quando estava prestes a transbordar, você dizia "Deu." Isso evitava uma grande bagunça na sala de jantar. Evitava o desperdício de algo bom. Era o suficiente para que você pudesse saborear o refrigerante sem ter uma lambança para limpar depois.

Quando você cresceu, viu que não é exatamente assim que acontece com todas as outras coisas. Diante de um copo meio-cheio (ou meio-vazio, dependendo do quão otimista você é), a gente nunca sabe dizer para nós mesmos quando já é suficiente.

Você tentou uma, duas, dez, cinquenta vezes. Já não deu? Logo vai começar a derramar. Vai melar toda a mesa, vai escorrer e sujar seu carpete e sua roupa. Vai ter uma grande bagunça para limpar depois. Você é grande o suficiente para saber a hora de parar, não é? Mas você não para. O copo está quase transbordando, o desperdício de energia mental é iminente, a garrafa de boa vontade e paciência está ficando vazia, mas você continua enchendo o copo e esvaziando seu estoque de paz de espírito.

Depois que você cresce, não há ninguém ao seu redor para te dizer que já deu. E a verdade é que, mesmo se tivesse alguém para nos avisar, nós não daríamos ouvido. Nós queremos sempre mais, duvidamos de leis básicas da física, insistimos em continuar tentando, não levamos em conta erros passados. Esse é um novo copo, você pensa. Nesse cabe mais.

E, quando as primeiras gotas começam a escorrer para fora e a gente deveria se dar conta de que já deu, é aí que a gente continua a despejar. Já está derramando, mesmo. A bagunça já está feita. Nada pior pode acontecer agora, certo?

Você pode tentar se enganar e apostar nas possibilidades mais duvidosas. Uma hora ou outra, vai ter que se convencer de que é hora de parar. De que a bagunça já está maior do que você imaginava. De que vai levar mais tempo do que você tem para limpar tudo.

Quando você finalmente abre os olhos e se dá conta disso, passa a entender que as coisas que realmente valem a pena são degustadas em doses pequenas. Que a simplicidade é o cubo de gelo que ajuda a dar volume no copo e, ainda por cima, refrescar seu conteúdo. E que não há nada mais simples do que se contentar com o que você tem, sem excessos, sem desordem, sem desafiar seus próprios limites.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Deixe o céu cair


É interessante a forma como o céu sempre foi usado como ponto de referência para diversas coisas que fazemos em nossas vidas. Os antigos navegadores o usavam como mapa. Os meteorologistas o observam para prever fenômenos naturais. Os astrônomos o quebram em milhões de partes para encontrar algum padrão que desvende o mistério da vida. Os pássaros sentem o magnetismo da Terra e usam o céu como estrada. Nossas vidas são diretamente influenciadas por um teto azul-claro e, em razão disso, é para lá que apontamos nossos maiores planos e desejos: para as estrelas-cadentes que o cruzam, para um deus que o habita, para o alto que desejamos chegar.

Não seria, portanto, nada menos do que desesperador quando o céu começa a desabar. Poucos de nós conseguem identificar o que está acontecendo, mas quando olham para cima e se dão conta de que faltam alguns pedaços do firmamento, o pânico se instala. Mas, até você perceber isso, leva um tempo.

Primeiro você ouve um som. Um conjunto de sílabas, um telefone tocando, uma televisão dando uma notícia. Você não está preparado para aquilo - nenhum de nós está. E então você sabe, subitamente, que as coisas vão mudar. Que nada do que você conhece continuará o mesmo.

A forma como as pessoas que você nunca pensou que te decepcionariam partem da sua vida. O medo que você havia superado há muito tempo volta a te assombrar. As medidas drásticas que você nunca pensou que fossem ser colocadas em uso se tornam sua única opção. E, quando você vê, é tarde demais. Não dá mais tempo de remendar, de tapar o buraco, de fingir que não ouviu. O céu desaba de tantas formas que a gente mal percebe que está acontecendo. Mas está. Pedaços gigantescos de firmamento vivem caindo sobre nossas cabeças durante a vida toda, nos deixando desnorteados, manchando nossas memórias boas.

Uma vez que você não tem o céu sobre você para te guiar, você está caminhando sozinho, sem pistas, sem mapas. Sem ter para onde endereçar nossas dúvidas, nossos desejos, nossas esperanças, geralmente ficamos parados, ouvindo os estrondos colossais que fazem o chão tremer, sentindo a poeira fria levantada, tentando nos proteger da tragédia. Fechamos os olhos e simplesmente deixamos o céu cair.

Não é fácil e nem é bonito. Cada um de nós sabe bem disso. Depois que o céu desaba, fica um vazio. Você estava lá, viu tudo caindo, e não pôde fazer nada. Porque o céu é muito grande, tão grande quanto os sonhos que você depositou nele. E você é muito pequeno. Quase invisível.

Quando o desastre acaba, nós estamos parados no meio dos escombros. Não há placas indicando para onde ir, e a gente tem que usar o próprio coração como bússola. E é aí que a tarefa mais importante da sobrevivência começa: procurar dentro de nós as nossas próprias estrelas, pendurá-las na escuridão e traçar mapas mais precisos e seguros no céu, para que ele não desabe de novo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Colapso


O corpo humano é um sistema perfeito. Tudo funciona essencialmente para que você se mantenha de pé. Seus ossos sustentam seu peso, seus olhos te ajudam a se localizar no espaço, seu diafragma te ajuda a respirar. Mas há algo que ninguém consegue entender completamente no corpo humano, por mais que se pesquise a respeito: a mente. E ela é a parte mais importante para que nosso sistema continue funcionando bem, porque, uma vez que a mente se compromete, todo o resto do corpo sente e entra em colapso.

A queda. Os danos. Aquele momento em que você descobre que não é forte o suficiente. Que não pode lidar com tudo. Que não consegue mais ficar de pé. Às vezes, você não consegue sequer sentir seu próprio corpo, seu próprio coração batendo. Acho que tem algo a ver com a alma, porque você morre um pouquinho.

É difícil enumerar os motivos pelos quais a mente colapsa de vez em quando. Pode ser por uma grande decepção. Por uma perda insuperável. Pela verdade que se revela rápido demais, queimando suas retinas com seu brilho inesperado. Mas, no geral, colapsos têm como catalizadores acontecimentos muito pequenos que, por si só, nunca causariam mal nenhum. Esses acontecimentos são apenas a faísca que inicia a grande explosão, e não seriam nada se não tivéssemos uma represa de combustível - medos, dores, memórias - armazenada dentro de nós. Às vezes, é difícil encontrar espaço moral e físico para expressar tudo isso, e a gente acaba guardando tudo, esperando que fique lá até desaparecer. Mas não desaparece. Não até você perceber que está pesado demais até mesmo para continuar caminhando e desabar.

Ninguém está preparado para um colapso, porque eles são imprevisíveis. E quando acontecem, fica difícil identificar a tênue linha entre a sanidade e a loucura. Entre a vida e a morte. De repente, você olha ao redor e percebe que está em um lugar completamente diferente, e não faz ideia de como chegou lá, nem se vai sobreviver à mudança brusca de temperatura.

Quando a mente falha, quando sua alma deixa seu corpo, quando você não consegue sequer distinguir o que é real, o que é certo, há apenas uma coisa que se pode fazer para se manter de pé: esperar que o resto do corpo consiga se sustentar, que os nossos instintos lutem por nós, e, principalmente, rezar para que a vida nos mostre uma forma improvável e impensável de continuar respirando.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lapso



Você. De todas as pessoas possíveis. De todo mundo que você conhece, e também daqueles que nem sonha que existem. Parado em um parapeito, em um terraço, como se fosse pular, mas você sabe que não vai. Você sabe disso, mas como poderia saber de todo o resto? Da rota de colisão na qual estava dirigindo em altíssima velocidade, do choque iminente e inevitável. Você não poderia imaginar.

E de todas as cartas, e as lágrimas em meio de sorrisos, de um humor bobo e auto-indulgente, de toda a grama grudada em seus sapatos dos caminhos longos que trilhou, você estava sentado esperando a tempestade e então foi eletrocutado em campo aberto. A febre, a dor, a somatização de cada confiança despedaçada pelo choque, os gemidos baixo de socorro!, as mãos trêmulas de medo e de raiva. A água lambendo seu rosto, em um contraste amargo com o fogo queimando debaixo de suas pálpebras tão pesadas, tão cansadas.

Você viu seu coração virar uma pedra, logo você!, justo você!, que nunca comprou a ideia de que a essência de alguma coisa pudesse mudar sob pressão. Contrariando toda a química e toda a física, você não conseguiu salvar sequer uma gota de sanidade, sequer um tijolo do templo construído em um solo duvidoso de mentiras. Lendo cada sílaba no lábio de alguém, tentando encontrar inconsistências em um monólogo ridículo e nada interessante, tentando consultar um dicionário de palavras desordenadas e sem nexo, e rezando para um deus em que você nunca acreditou para que tudo aquilo não fosse real, para que fosse pagar sua própria língua, para que estivesse muito errado. E não estava.

E, mesmo assim, o tempo continuou sendo digerido em seu estômago vazio, tentando encontrar espaço em seus pulmões intoxicados, procurando uma forma de correr junto com seu sangue que agora estava verde escuro. Seus pensamentos te agarravam pelo pescoço e não te deixavam dormir. Havia um peso morto dentro de cada célula viva em você, uma tonelada insuportável de coisas indigestas que seu sistema não conseguiu nem digerir nem expelir. E você se entregou. E você pulou.

Você. De todas as pessoas possíveis. De todos os tempos possíveis. Você. Quem acreditaria?

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Corações que não batem


Recebi essa imagem pelo Facebook e, a princípio, me pareceu a afirmação mais idiota do mundo. É claro que é impossível. Se seu coração não bater, você morre, certo? Às vezes. Se você olhar ao seu redor, encontrará centenas de pessoas que comprovam o contrário: há pessoas que continuam vivas, mesmo sem ter o coração batendo. É impossível viver se seu coração não bater, e essa frase se aplica de formas mais profundas do que o óbvio.

Para de bater o coração de quem não experimenta coisas novas - um primeiro beijo em alguém e toda a gravidade contida no espaço entre dois rostos, frações de segundo antes do beijo em si. De quem tem medo de mudar de vez em quando, de apostar suas maiores fichas em coisas grandes, de testar seus próprios limites e descobrir que pode ir além deles.

Morre em plena vida quem deixa que sonhos morram ainda dentro do ventre. Quem se critica demais e se menospreza demais a ponto de empacar e esperar que as coisas caiam do céu. Quem não acredita em seus próprios talentos e desperdiça seu tempo com pessoas e situações que não os favorecem. Quem arquiva projetos, quem desiste no primeiro obstáculo, quem se rende ao medo.

É preciso fazer o coração bater de vez em quando. Dar um choque em um dos órgãos mais preciosos que nós temos. E há tantas formas de fazer isso sem precisar de um desfibrilador! Apaixonar-se, viver um amor impossível, decepcionar-se, pirar de vez em quando (ou todos os dias), largar tudo que não está dando certo e tentar algo completamente inusitado, pintar o cabelo de outra cor, fazer uma tatuagem, ver um filme arrebatador, escrever um livro mais arrebatador ainda, beber a dor até a sua última gota, morrer e ressuscitar, ir até o ápice de si mesmo, declarar-se para alguém, correr riscos, colocar tudo em jogo, perder, começar do zero.

Só assim a gente pode continuar vivo. Só dessa forma a gente consegue perceber que, no final das contas, ninguém tem tanto a perder assim, que seja necessário fazer seu coração parar de bater em plena vida. É impossível viver se seu coração não bater. E eu diria mais: é insuportável.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Alguns infinitos...


Se o tempo na sua cidade não estiver nublado como está na minha agora, e se não houver tanta poluição no caminho entre o céu e a sua casa, quando você olhar pra cima, haverá dezenas de pontinhos azuis no meio da escuridão, e nós chamamos esses pontinhos de estrelas. Alguns são planetas, outros galáxias, na dúvida, dizemos que são estrelas. Mas o que você vê é apenas uma fração quase insignificante do número de estrelas no Universo. O número mais aceitável é 70 sextilhões. Consegue imaginar um número tão grande de qualquer coisa? É demais para o nosso entendimento.

Vivemos em um Universo provavelmente infinito. Isso significa que as possibilidades que você tinha de ter nascido em outro lugar também são infinitas. Mesmo assim, aqui está você, em uma dessas numerosas estrelas. Descendo aqui na Terra, temos outros números gigantes. Sabe há quanto tempo ela existe? Cerca de 4,5 bilhões de anos. Sabe quantas pessoas já passaram por aqui? Não é um número preciso, obviamente, mas a estimativa é de mais de cento e seis bilhões. E isso falando de seres humanos - a Terra abriga cerca de 8,7 bilhões de espécies diferentes.

No meio de tantos números, a gente acaba se perdendo. Não nos damos conta de um fato incrível, quase impossível: você está exatamente aonde deveria estar. Você nasceu neste planeta dentro da família que você tem, faz parte desta espécie, mora na sua cidade, conhece as pessoas que conhece, vive nesta época, neste ano, neste dia. E aí, você conhece alguém.

Quando você conhece alguém, pode-se chamar isso de milagre. Já parou para pensar nisso? Essa pessoa poderia estar em bilhões de lugares diferentes, vivendo milhares de anos antes de você, a milhões de quilômetros, e ela poderia até mesmo não ser uma pessoa! Mesmo assim, ela tinha uma vida, ela nasceu aqui, ela passou por diversas coisas na vida, até que seus caminhos se cruzaram. Quais as possibilidades? Ok, não vou te encher com mais números, mas acredite: são infinitas.

Algumas pessoas chamariam isso de destino, mas não sou muito adepto da ideia de que as coisas estão determinadas a acontecer e de que tudo acontece por uma razão. Se fosse simples assim, não precisaríamos fazer nada da vida - apenas nos sentaríamos e esperaríamos por tudo acontecer. Mas acredito que o destino seja completamente mutável, uma mistura de acaso e circunstância. O destino muda a cada segundo: cada decisão que tomamos, cada resposta que damos, cada renúncia que decidimos fazer - tudo que você vive serve para riscar seu caminho em um mapa infinito do espaço e do tempo. E todas as coisas que acontecem, aconteceram e vão acontecer na sua vida, são milagres por definição, pela infinidade de possibilidades existentes em um Universo infinito.

Na próxima vez que olhar para o céu e ver as estrelas, tenha isso em mente. Sua vida é uma bênção. As pessoas que você conhece são raras. Seus problemas são apenas grãos de poeira cósmica. Seus medos praticamente não existem. E, considerando tudo isso, nada é impossível. Nem seus sonhos mais profundos, nem seus planos mais loucos, nem seus desejos mais intrínsecos: nada. Nada nesse Universo. Acredite. Nada mesmo.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quem diria?

Quando eu estava na sexta série e alguém me perguntava o que eu queria ser quando crescesse, a resposta estava na ponta da língua: "quero ser veterinário". Anos depois eu encontrei o meu primeiro amor. E era claro o que eu esperava: "nós vamos ficar juntos para sempre". Era o que eu dizia para meus amigos, com quem eu também pensei que teria contato para o resto da vida. O que aconteceu nos próximos anos? Eu decidi que queria ser jornalista, depois publicitário, depois biólogo, e então, escritor. Obviamente, meu primeiro e eterno amor não durou mais do que alguns meses. E meus amigos seguiram suas vidas. Nada saiu como eu esperava.

Todos nós fazemos planos para o futuro mas, entre um plano e outro, existem lacunas que ninguém sabe como preencher. Você sabe que vai sair de casa às oito, pegar o ônibus, ir trabalhar. Mas você sabe, de alguma forma, o que vai acontecer no caminho para o trabalho? Quem você vai encontrar, que tipo de coisas vai ver e ouvir, quantas emoções vai sentir? Para preencher essas lacunas, sobra para aquilo que gostamos de chamar de acaso. E o acaso é o pai do imprevisto.

Poucas coisas nessa vida podem ser planejadas às cegas. Gostamos de pensar que temos o futuro traçado em um cronograma infalível, mas nunca é assim. Porque a vida não é uma linha reta; ela é cheia de curvas e, ao fazer cada uma delas, você não sabe o que vai encontrar no outro lado. Você freia cautelosamente, vira confiante e, de repente, o cenário é outro, com elementos que você não havia imaginado encontrar.

Em meio ao inesperado, pessoas se acidentam e morrem, times aparentemente promissores são eliminados em goleadas quase sobrenaturais, relacionamentos de anos se rompem, confianças são quebradas, castelos ruem, pessoas sãs enlouquecem. De repente, você está vivendo uma vida que jamais imaginou que seria sua.

E o que nos resta fazer diante do inesperado? Nossos grandes amigos hoje podem ser nossos piores inimigos amanhã. Os amores que construímos com tanto empenho podem se transformar em mágoa. O emprego dos sonhos pode se revelar um grande pesadelo.

Quando a vida sucumbe ao inesperável, há duas opções. Você pode tentar lutar contra ele, fazer com que sua vida volte a ser o que era antes, remendar os cacos causados pelo acidente. Talvez isso dê certo, se você souber exatamente onde foi que as coisas começaram a mudar - e essa é a parte mais difícil do processo. Nem sempre funciona.

Ou, há a opção que todos nós acabamos seguindo, de uma forma ou de outra: entender que imprevistos acontecem e que, além disso, eles nos transformam. Mudam como olhamos para as outras pessoas e para nós mesmos; revelam caminhos alternativos para destinos mais brilhantes; nos forçam a procurar esperanças onde parecia não haver nenhuma. É o inesperado que muda nossas vidas. E, no final das contas, a gente acaba entendendo que a vida é, em si, um grande acidente, e que o resto nada mais é do que consequência de se estar vivo.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aquilo que perdemos

"Somos tambien lo que hemos perdido." Li esta frase, já há alguns anos, no encarte de um CD da Laura Pausini. Já falei dela em outro texto, mas sinto que preciso falar de novo. Ela me marcou bastante justamente por falar da perda de forma tão presente. Costumamos associar a perda com a ausência, com o passado, com coisas que não fazem mais parte das nossas vidas ou de nós mesmos. Não é assim de verdade.

Quando você olha para alguém na rua, ou quando olha para você mesmo no espelho, o que você vê não é apenas quem aquela pessoa é, o que ela tem, o que ela deseja ser. Em cada um de nós há cicatrizes e sombras das nossas perdas. Elas fazem parte de nós, do que somos, de como agimos, da forma como enxergamos o mundo aqui fora.

Somos as noites que passamos em claro nos perguntando sobre o futuro ou relembrando o passado. Somos os buracos que ficaram em nós. Somos o eco improvável em um vácuo criado em nossas almas. Somos o tempo que perdemos, o riso que deixamos de abrir, as lágrimas que secaram sozinhas, as lembranças das pessoas que se foram por vontade própria ou não. Somos aquilo de que tivemos de abrir mão para crescer, para nos libertar, para seguir em frente. Somos retalhos dos nossos projetos inacabados, das nossas preces interrompidas, dos nossos amores infinitos enquanto duraram. Somos os lares pelos quais passamos, as experiências que experimentamos, o dinheiro que gastamos, a morte em plena vida, as feridas auto-infligidas. Somos o resultado imperfeito das loucuras causadas por nossas abstinências, seja lá do que for. Somos nossos erros, nossas curvas, nossos choques. Somos nossos traumas de infância, nossas surras, nossos tombos, nossos fantasmas. Somos tudo aquilo que já foi, é, ou será nosso.

Não há como escrever nossa autobiografia sem levar em consideração aquilo que perdemos. Foram essas perdas que nos moldaram, que nos guiaram até aqui. Somos o que somos porque aprendemos a lidar com cada uma delas, com cada formato diferente de lacuna que ficou dentro de nós. Elas nos fortaleceram em certos pontos, nos amoleceram em outros, e talvez estejam mais presentes em nós do que aquilo que ainda temos.

Talvez esse seja o lado bom das perdas: nos fazer entender que, para que a vida continue em movimento, para que possamos crescer e testar nossos próprios limites, é necessário lidar com cada uma delas. E, quando nossa jornada chegar ao fim, saberemos que nada foi perdido; de fato, está tudo lá, definindo as linhas tortas, mas únicas, que nos fazem ser quem somos de verdade.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Marte

Há essa estrela vermelha no céu, que me fascina tanto quanto me assombra. É longe, e eu poderia me transportar para lá na velocidade da luz, se dependesse de mim. E me desprenderia de tudo isso que me acorrenta a uma gravidade duvidosa. Aceitaria o nada, a areia, as rochas como uma bênção. Ouviria o eco do meu próprio coração bater, e basta. Nada que vai para Marte volta, porque custa caro, e eu também não voltaria. Querem colonizá-lo, ouvi dizer. Ainda dá tempo de fazer a inscrição?

Mas Marte passa rápido por mim. Em poucas horas, cruzou o céu e me deixou aqui. Aqui onde é longe. Aqui onde é frio. Aqui onde não há para onde ir.

sábado, 19 de abril de 2014

Assopro

É inquieto o silêncio que me acorda durante as madrugadas. Faz tempo que o ouço. É uma voz que não é de ninguém. É um som sem timbre, sem nota, sem vibração. Tudo o que me assombra, tudo o que me esclarece, tudo o que é sólido e invariavelmente derrete, me afoga em um copo fundo de palavras em código. Meu cérebro se sobrecarrega, não há verdade ou mentira, não há hoje ou ontem - é tudo sempre, é tudo aqui.

Leio os lábios invisíveis que se pronunciam, batendo seus dentes escuros e refletindo no esmalte as luzes de uma cidade morta. Mas nada é claro, e eu sou surdo. Tateio as paredes no escuro, procurando por uma porta, procurando por uma saída. Minhas mãos me enganam e eu trombo e caio.

Quem me pediu para esperar, me viu correr como um cometa. Não há lucidez, oxigênio ou calor que me prenda a algum lugar. Tudo aquilo que se repete dia após dia, minuto após minuto, faz com que eu me sinta menos vivo, menos real, como se eu estivesse me dissolvendo, me desbotando, me prendendo aos papéis de parede da decoração. Não sou daqui, eu penso. Não sou de nenhum lugar, porque minha alma é itinerante. Minhas asas se abrem e eu tenho que voar, não importa quando nem para onde.

Subo tão alto e me deparo com um buraco negro. É como se ele estivesse me esperando o tempo todo. O silêncio pressiona meus tímpanos de novo. Sinto sua língua provar do meu sangue. O nada se funde com o tudo. Suga tudo para a inexistência e, quando tudo desaparece, o nada suga a si mesmo. A partícula de nada, tão pequena que nem existe, implode e gera planetas, galáxias, estrelas. Todos eles cheios de tudo, cheios de nada. O silêncio assombra nos cantos escuros da mente, e quem ouve não entende.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Tempo, tempo, tempo

Mexendo em coisas velhas, encontrei pedaços importantes do meu passado, peças de um quebra-cabeça inconclusivo que tenta formar o que sou hoje. Há uma frase de um filme chamado "Amores Perros" de que gosto muito, e que diz "Somos também aquilo que perdemos". Somos frutos da erosão causada pelo tempo. Moldes imperfeitos das circunstâncias nas quais nos chocamos. Planos que não correram como imaginávamos, pedaços rasurados dos nossos projetos iniciais, remendos da nossa própria alma despedaçada milhares de vezes.

Eu era um garoto que não se encaixava em quase nenhum lugar. Passei por tanta coisa que às vezes parece ter sido em outra vida e, se eu parar para pensar, de fato foi, a julgar pelos inúmeros "para sempre" que vivi e que ainda existem em algum lugar, em alguma outra vida, se é que eu acredito nisso, se é que eu acredito em alguma coisa. Foram eternidades que se acabaram em um piscar de olhos, antes que eu pudesse pronunciar um protesto. Eu era o garoto que saía correndo no meio da aula de inglês e ia tomar chuva no pátio do colégio. Eu tinha (ainda tenho?) uma tristeza dentro de mim que ninguém conseguia explicar ou entender, a qual eu contemplava (ainda contemplo?) em um deleite secreto, silencioso, agridoce.

Olhando para trás, apesar do caos para o qual parece que fui predestinado, há uma certa inocência nos meus atos, uma virgindade espiritual e empírica. Quem eu era naquele tempo não tinha a menor noção das tempestades que estavam por vir, das dúvidas que surgiriam, dos medos que me assombrariam. O que eu sabia, afinal? Com 15 anos de idade, o mundo era gigantesco e eu era pequeno, mas não mais do que sou agora. Olhando para aquele garoto, tão inexperiente, tão otimista e ingênuo, eu me pergunto como seria se eu soubesse o que estava por vir.

E se eu não tivesse andado por aqueles caminhos? E se não tivesse feito as escolhas que fiz? E se eu não tivesse conhecido as pessoas que conheci? Quem eu seria hoje? Onde estaria, e com quem? Será que tudo estaria diferente hoje? Ou eu acabaria saindo no mesmo lugar, independente da porta pela qual eu tivesse entrado?

A resposta que encontro para essas perguntas está diante dos meus olhos todas as vezes que eu me olho no espelho: as tempestades que enfrentei me revelaram modos de sobrevivência para as próximas; as pessoas que conheci me ensinaram lições das quais jamais esquecerei; os caminhos que trilhei eram os certos, simplesmente porque a bússola dentro da minha alma indicava para eles no momento em que tomei as decisões que tomei; minhas perdas me ensinaram a cuidar dos meus ganhos; meus erros justificaram meus acertos.

Se me dessem uma nova chance de fazer tudo de novo, é claro que eu não faria tudo igual. Minha essência é testar a vida de todas as formas, e eu não perderia tempo com uma reprise de algo que já sei como acaba. O tempo não só mudou quem eu era. Ele me transformou no que sou: uma colcha de retalho dos meus erros, das minhas experiências, dos meus amores, dos meus acertos acidentais, das minhas escolhas imprudentes, dos meus ganhos e, principalmente, das minhas perdas.

E quando aquelas dúvidas aparecem, encharcadas de desespero e imediatismo, há uma resposta que ameniza temporariamente minhas aflições: tudo o que aconteceu me trouxe até aqui. E isso basta por agora.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Sozinho é um lugar mais seguro


Eu não queria dormir sozinho. Eu tinha dez anos e tudo ao meu redor naquele quarto iluminado apenas pela luz de um abajur eram sombras, medo, fantasmas. Eu me deitava na cama para dormir, mas o que eu realmente fazia era ficar acordado, em vigília, esperando pelo momento do bote, do terror iminente e inevitável. Em pânico, eu corria para o quarto da minha irmã e, de manhã, era repreendido pelos meus pais. "Você precisa enfrentar seus medos. Isso é coisa da sua cabeça. Nada vai acontecer."

Aqueles dias se foram. Hoje, olhando para trás, vejo que, embora tudo pareça igual, está muito diferente. O aleatório é uma ilusão. Enquanto você dorme - quando você consegue ignorar seus fantasmas, enfrentar seus medos, acreditar que nada vai acontecer -, as linhas do acaso se unem em padrões quase imperceptíveis, transformando todo o cenário.

Aqueles fantasmas também se foram e eu sinto falta deles. Dos medos imaginários que eu podia enfrentar ao fechar meus olhos e fazer uma oração - porque minha fé estava intacta, virgem, inocente, antes de ter sido removida de mim a duros golpes de palavras.

Hoje meus fantasmas são outros. São alimentados por coisas empíricas. Agarram-se nas linhas soltas do acaso. São baseados em fatos reais. A diferença é que hoje eu quero - e preciso - dormir sozinho. Estar só é a única forma de combatê-los. Sozinho é minha prece. Sozinho ninguém me fere. Sozinho eu leio, eu canto, eu durmo, eu sonho, eu danço. Sozinho eu chego, eu alcanço. Sozinho eu existo de verdade, de dentro pra fora. Sozinho é um lugar mais seguro.

Enquanto escrevo essas palavras, ouço o silêncio da solidão em um lugar que, durante o dia, é confuso, é intenso, é assustador. Todos estão dormindo: as sombras, os medos, os fantasmas... E, quando eles acordarem, eu estarei dormindo, eu estarei seguro. Sozinho nada vai me acontecer.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Antigravidade


Eu pensei que soubesse lidar com isso. Com as dificuldades existentes e tangíveis; com as adversidades colocadas pelo destino; com os limites impostos pelas circunstâncias; com a geografia que não aprendemos em nenhuma instituição de ensino. Eu estava errado. Eu não sei.

Você pousou em mim como um astronauta, e eu perdi minha gravidade, de repente você era o Sol, eu estava em órbita ao seu redor, um Sol quente e distante, e eu desafiaria essa nova gravidade se soubesse que você iria me segurar, que não iria me deixar cair no universo escuro e infinito até colidir com algum corpo que não é o seu. Eu estava errado. Você não vai.

A galáxia se condensa e se contrai como um pulmão. Sinto a densidade dos dias pressionando minhas células. Meu coração bate devagar, embora minha respiração seja ofegante por tentar correr contra o tempo, contra o espaço, desafiando leis físicas milenares. Há um grito preso em minha garganta que não se propagará no vácuo. Pensei que fosse forte o bastante, que meus olhos pudessem enxergar além disso tudo, que o veneno das horas não fosse me infectar. Eu estava errado. Não sou.

Dissolvo um pouco dessa realidade em um copo d'água e bebo fazendo careta, porque é intragável. Não posso mais flertar com o impossível, procurando por uma brecha, como um hacker procura uma falha em um código de programação. A vida é mais complexa do que isso. A correnteza escura me puxa e, finalmente, me deixo levar por ela. Está em suas mãos. O Sol é seu. A gravidade é sua. Você decide.

Nossas memórias são poucas, mas nutritivas para os medos que alimento todos os dias.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Insônia

Já percebestes que não mudastes? Que continuas o mesmo? Que só mudaram as horas, o vento, o tempo, que choveu e molhou e secou, que abriu Sol e a menina que andava de bicicleta na rua caiu e se machucou e se levantou e se remediou e sarou, que os prédios abrem suas portas todas as manhãs quase no mesmo horário, que as pessoas vivem suas vidas, fazem suas compras, andam em seus carros, têm seus filhos, divorciam-se, casam-se, viúvam-se, encontram o amor de suas vidas em uma esquina machucada pelo tempo, que o cachorro andando na rua não tem dono, nunca teve, que os fiéis pedem a Deus algo que não sabem ao certo se querem mesmo ter, que as farmácias vendem remédios milagrosos para a cura da tristeza e que, no final das contas, eles só causam mais tristeza, assim como as receitas milagrosas vendidas pelas revistas e pelos jornais e pelos televisores ligados em casas de famílias na hora do jantar, forçando o pai, a mãe e os filhos a acreditarem em um modelo inexistente, que os livros têm páginas defeituosas, gramática mal digerida, histórias mal contadas, caracteres mal impressos, que o som é uma ilusão de ótica, que as leis nunca serão todas cumpridas, que a sopa esfria no prato de uma criança que se empanturrou de doces antes do jantar, que alguém está gritando em algum lugar do mundo, que ninguém vai ouvir, que telefones tocam solitários sem ninguém do outro lado da linha, que mensagens nunca chegam, que cartas extraviam, que os trens emitem ruídos para o infinito, que o infinito está lotado de estrelas que poluem o vazio, que as letras são meras construções de pequenos pontinhos de nada, que a tecnologia mal existe, que os dedos das mãos nunca tocarão o céu, que o mundo gira sempre do mesmo jeito, e que nada mudastes, que tu não mudastes, que eres o mesmo que eras há eras, que tudo é tão efêmero quanto eterno, já percebestes isso?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Oceano

Como atrito segurando a fluência dos dias, te guardo em uma parte segura da minha memória. Então estamos aqui, rodeados por bilhões de estrelas em um universo efêmero que um dia desaparecerá. Como ele, desaparecerá o verão. Com o verão, irão embora as cores. Mas, neste momento, que pode ter durado tanto uma eternidade paradoxal quanto a velocidade de um pensamento bom, há a música rápida, em contraste com seus lábios lentos, tímidos, finos como a linha que separa o certo do errado, o lúcido do insano, o medo de todo o resto - uma linha que vale a pena cruzar. Há, também, o escuro do espaço. As luzes oscilantes revelando suas cores e as minhas e, de repente, o universo tem todas elas e mais um milhão que meus olhos não enxergam por causa dos seus.

Cabe um punhado de horas em seus olhos, profundos como o oceano. Há vida dentro deles. Há peixes buscando algo. Há areias finas e macias firmando um universo infinito de palavras, toques, sensações. E, ao mesmo tempo, eles são tão pequenos... Como se confessassem algo, e eu não desvendei sua mensagem, codificada em um bilhão de sílabas e átomos, porque você é pura linguagem e química e tudo que há em consequência dessa combinação. Há um porto, há um farol. Nada é mais convidativo do que seus olhos. Então, a âncora está prestes a ser lançada, a fincar o desconhecido, o que eu não fazia ideia de que existia até pouco tempo atrás.

Mas o tempo perdeu seu trilho, colidiu com a noite, explodiu em estrelas. Estrelas. Lembro-me delas e de tudo que desaparecerá, do verão finito, do universo finito, do porto de chegada e partida em seus olhos. Entendendo isso, como uma criança que aprendeu a subtrair números de horas, puxo a âncora e deixo que o navio em meu peito vague pelas ondas do seu oceano. Um dia partiremos.

Junto o tempo fragmentado em estrelas em um pote transparente e o guardo junto a você. Posso observá-lo quando quiser. Enquanto houver estrelas, haverá o tempo. Enquanto houver tempo, haverá você.

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