quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O frio nunca me incomodou


Quando o primeiro sinal da tempestade apareceu, uma felicidade indescritível me preencheu. Fazia muito tempo que eu não sentia aquilo. O frescor de rajadas fortes e novas. A luz dos relâmpagos iluminando meus olhos. A sensação de que algo muito grande estava começando.

Eu senti isso dentro do meu peito ao mesmo tempo em que o celular vibrou. Era uma mensagem. Dizia coisas que eu não compreendi no momento, e as quais eu não entendo até hoje. A energia caiu por causa da chuva, no exato instante em que eu fiz uma pergunta, e eu fiquei no escuro, esperando por uma resposta, tentando prevê-la, criando planos e me sentindo patético.

É difícil entender por que a gente continua fazendo isso, mesmo depois de tantas tempestades. Nós sabemos exatamente o que elas fazem: arrancam tudo do lugar, deixam um rastro de sujeira e bagunça, danificam as paredes mais altas que você ergueu para se proteger, fazem com que as pessoas se escondam, fujam, procurem por abrigo.

Mas a verdade é que eu nunca fui de fugir de tempestades. Pelo contrário: eu pareço correr para elas, implorar por elas. Quando chove, em vez de ficar dentro de casa ou procurar por um lugar seguro, seco e quente, eu insisto em sair na chuva, me entregar ao frio, ao vento indomável, às gotas afiadas que atingem meu rosto com força. Tenho a impressão de que é isso que faz com que eu me sinta vivo: o frio, o medo, a dor, o desespero. Você sangra apenas para saber que está vivo, é o que diz uma música, e eu não poderia concordar mais.

Fazia tempo que eu não via uma tempestade dessa acontecendo dentro de mim. E isso me assusta tanto quanto me fascina. Sinal de que eu não morri nas outras. Que, apesar de toda a destruição e de todo o caos, minha alma ficou intacta. E, embora meu corpo inteiro diga "Corra!", é aqui que eu vou ficar. No meio da tempestade. No olho do furacão. Porque, quando os primeiros raios de sol começarem a surgir de novo no meio das nuvens, eu vou ter a confirmação que faz qualquer tempestade valer a pena: eu sobrevivi mais uma vez. E que venha a próxima.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

It's just medicine



Eu não sabia o que dizer a princípio. E havia um tom de chocolate meio-amargo misturado em seus olhos doces, uma irresistível tentação emoldurada por cílios curtos, mas bem desenhados, delineados em um ângulo perfeito com o seu sorriso que poderia dizer tantas coisas, assim como eu.

Agora você me chama de louco e eu rio por dentro, mesmo que nunca tenha gostado dessa definição. Existe um meio-termo para tudo, eu percebo. Eu que sempre vivi além da borda, derramando mais do que eu conseguiria aguentar. Eu que nunca encontrei uma cura definitiva para algo tão instável que é o que eu sou. Eu que sempre tive medo do escuro, percebo que estou tateando nele, procurando por portas que possam dar a algum lugar da sua alma, janelas que possam arejar um pouco do rarefeito que queima dentro do seu peito.

Você poderia ser o que quisesse, e eu realmente não iria ligar. Eu gosto de todas as tonalidades que você apresenta, do púrpura ao azul-claro, do céu rosa ao verde da aurora boreal, do negro que tinge seus cabelos ao branco profundo e puro que ilumina seu sorriso.

Então você me fala de dor e eu entendo cada agulhada dela. Cada junta que range quando algo parece pesado demais. Cada droga que puxa nossa alma sem a nossa autorização. Conheço a dor como uma velha amiga, eu que fui despido da pele que me protegia dela. Sei o que você sente quando fala da dor. Sei o que você sente quando fala de medo. E me pergunto, em algum lugar dentro de mim que eu geralmente não ouso estar: qual seria o seu remédio? O que poderia curar isso em você?

Se não o risco, se não as penas com as quais você monta suas asas, se não o som de outro coração batendo próximo ao seu, se não a chuva que aguarda para cair, onde estaria - por trás dos teus medos e do teu sorriso, por trás da introspecção charmosa e da rispidez agridoce das tuas palavras - um mapa que pudesse te ajudar a escapar, e que pudesse me ajudar a te encontrar no meio do caminho?

São apenas remédios, afinal de contas. Apenas atalhos para amenizar as dores. Elas vão estar lá o tempo todo, por mais que você tente ignorá-las. Mas eu diria que eu seguraria sua mão quando você a sentisse e deixaria você esmagar meus dedos; que eu te salvaria de um temporal ou me molharia na chuva com você; que eu estaria do seu lado e impediria que a enxurrada levasse embora o que você tem de melhor; que eu manteria meus olhos abertos para que você pudesse fechar os seus.

Então eu abri minha boca para dizer cada uma dessas palavras. Eu respirei fundo, mas o silêncio me engasgou. Eu não soube o que dizer a princípio. Mas agora eu sei.

Agora você sabe.

domingo, 21 de setembro de 2014

O Suficiente


"Fala quando estiver bom", dizia alguma tia sua quando estava servindo refrigerante em um copo. O líquido começava a escorrer e, quando estava prestes a transbordar, você dizia "Deu." Isso evitava uma grande bagunça na sala de jantar. Evitava o desperdício de algo bom. Era o suficiente para que você pudesse saborear o refrigerante sem ter uma lambança para limpar depois.

Quando você cresceu, viu que não é exatamente assim que acontece com todas as outras coisas. Diante de um copo meio-cheio (ou meio-vazio, dependendo do quão otimista você é), a gente nunca sabe dizer para nós mesmos quando já é suficiente.

Você tentou uma, duas, dez, cinquenta vezes. Já não deu? Logo vai começar a derramar. Vai melar toda a mesa, vai escorrer e sujar seu carpete e sua roupa. Vai ter uma grande bagunça para limpar depois. Você é grande o suficiente para saber a hora de parar, não é? Mas você não para. O copo está quase transbordando, o desperdício de energia mental é iminente, a garrafa de boa vontade e paciência está ficando vazia, mas você continua enchendo o copo e esvaziando seu estoque de paz de espírito.

Depois que você cresce, não há ninguém ao seu redor para te dizer que já deu. E a verdade é que, mesmo se tivesse alguém para nos avisar, nós não daríamos ouvido. Nós queremos sempre mais, duvidamos de leis básicas da física, insistimos em continuar tentando, não levamos em conta erros passados. Esse é um novo copo, você pensa. Nesse cabe mais.

E, quando as primeiras gotas começam a escorrer para fora e a gente deveria se dar conta de que já deu, é aí que a gente continua a despejar. Já está derramando, mesmo. A bagunça já está feita. Nada pior pode acontecer agora, certo?

Você pode tentar se enganar e apostar nas possibilidades mais duvidosas. Uma hora ou outra, vai ter que se convencer de que é hora de parar. De que a bagunça já está maior do que você imaginava. De que vai levar mais tempo do que você tem para limpar tudo.

Quando você finalmente abre os olhos e se dá conta disso, passa a entender que as coisas que realmente valem a pena são degustadas em doses pequenas. Que a simplicidade é o cubo de gelo que ajuda a dar volume no copo e, ainda por cima, refrescar seu conteúdo. E que não há nada mais simples do que se contentar com o que você tem, sem excessos, sem desordem, sem desafiar seus próprios limites.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Deixe o céu cair


É interessante a forma como o céu sempre foi usado como ponto de referência para diversas coisas que fazemos em nossas vidas. Os antigos navegadores o usavam como mapa. Os meteorologistas o observam para prever fenômenos naturais. Os astrônomos o quebram em milhões de partes para encontrar algum padrão que desvende o mistério da vida. Os pássaros sentem o magnetismo da Terra e usam o céu como estrada. Nossas vidas são diretamente influenciadas por um teto azul-claro e, em razão disso, é para lá que apontamos nossos maiores planos e desejos: para as estrelas-cadentes que o cruzam, para um deus que o habita, para o alto que desejamos chegar.

Não seria, portanto, nada menos do que desesperador quando o céu começa a desabar. Poucos de nós conseguem identificar o que está acontecendo, mas quando olham para cima e se dão conta de que faltam alguns pedaços do firmamento, o pânico se instala. Mas, até você perceber isso, leva um tempo.

Primeiro você ouve um som. Um conjunto de sílabas, um telefone tocando, uma televisão dando uma notícia. Você não está preparado para aquilo - nenhum de nós está. E então você sabe, subitamente, que as coisas vão mudar. Que nada do que você conhece continuará o mesmo.

A forma como as pessoas que você nunca pensou que te decepcionariam partem da sua vida. O medo que você havia superado há muito tempo volta a te assombrar. As medidas drásticas que você nunca pensou que fossem ser colocadas em uso se tornam sua única opção. E, quando você vê, é tarde demais. Não dá mais tempo de remendar, de tapar o buraco, de fingir que não ouviu. O céu desaba de tantas formas que a gente mal percebe que está acontecendo. Mas está. Pedaços gigantescos de firmamento vivem caindo sobre nossas cabeças durante a vida toda, nos deixando desnorteados, manchando nossas memórias boas.

Uma vez que você não tem o céu sobre você para te guiar, você está caminhando sozinho, sem pistas, sem mapas. Sem ter para onde endereçar nossas dúvidas, nossos desejos, nossas esperanças, geralmente ficamos parados, ouvindo os estrondos colossais que fazem o chão tremer, sentindo a poeira fria levantada, tentando nos proteger da tragédia. Fechamos os olhos e simplesmente deixamos o céu cair.

Não é fácil e nem é bonito. Cada um de nós sabe bem disso. Depois que o céu desaba, fica um vazio. Você estava lá, viu tudo caindo, e não pôde fazer nada. Porque o céu é muito grande, tão grande quanto os sonhos que você depositou nele. E você é muito pequeno. Quase invisível.

Quando o desastre acaba, nós estamos parados no meio dos escombros. Não há placas indicando para onde ir, e a gente tem que usar o próprio coração como bússola. E é aí que a tarefa mais importante da sobrevivência começa: procurar dentro de nós as nossas próprias estrelas, pendurá-las na escuridão e traçar mapas mais precisos e seguros no céu, para que ele não desabe de novo.

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