sexta-feira, 30 de julho de 2010

Rio

"E eu queria acreditar quando me dizem que tudo vai ficar bem."


- Inspirado na garota do ônibus - 


Encostou a cabeça na janela e não parecia se importar com todas as outras pessoas dentro do ônibus, cada uma com seu próprio inferno particular. Simplesmente respirou fundo. E chorou.
As pessoas olhavam, a maioria disfarçadamente. Com pena, com espanto, com medo - como se chorar fosse a coisa mais sobrenatural do mundo.
Eu não pude deixar de imaginar o motivo por trás daquilo, a nascente daquele rio que ela desaguava através dos olhos, libertando tudo que estava preso, encalhado, entalado em sua garganta, em sua cabeça e em sua alma.
Saudades da família que ficou na capital quando ela resolveu se mudar para cá para estudar. Um bicho de estimação doente. O namorado que foi embora, assim mesmo, sem mais nem menos, e nunca ligou para saber como ela estava, o quanto estava sofrendo. O cheiro dele impregnado nas cortinas do seu quarto. A bolha no pé, causada por aquele sapato que custou metade do seu salário curto.
Ela deslizava o olhar pela janela. Observou o céu e as pequenas nuvens cinzas - a chuva que estava por vir. Então, voltou seu olhar para mim. Percebeu que eu a estava observando, invadindo sua privacidade, mergulhando cada vez mais fundo em seu rio.
Eu desviei os olhos, como quem se desculpa.
Eu quis me levantar, colocar a mão em seu ombro, pedir que respirasse, prometer que tudo daria certo.Mas eu não poderia pedir que parasse. Porque nenhuma palavra que eu dissesse seria tão confortante quanto seu próprio choro. Nada poderia limpar melhor sua alma.
Então ela continuou a chorar, sem culpa e sem vergonha.
Enxugou seu rosto quando chegou em seu destino e desceu do ônibus, olhando ao seu redor, se perguntando se aquele era o destino certo.
Se era o destino certo para ela.
E se seria aquele destino para sempre.

sábado, 24 de julho de 2010

O drama barato da cerveja barata

Inspirado na moça do outro lado do bar

Quando eu cheguei aqui nesse bar não havia quase ninguém. Agora, parece que toda a América do Sul resolveu se enfiar dentro desse espaço - que não chega nem perto de ser grande.
Eu sabia que ele estaria aqui. Apenas não sabia que ele estaria acompanhado.
Quem é aquela filha da puta?
Tento andar no meio dessa multidão e essa é uma tarefa difícil. As pessoas esbarram em mim e passam a mão na minha bunda, e eu quase derrubei a garrafa de cerveja, o que seria um grande prejuízo.
Meu principal objetivo de vida agora é ir para casa.
Não consigo me lembrar onde estacionei meu carro. Não consigo me lembrar se vim de carro. Ou se eu tenho um.
Enquanto me decido, sento em uma cadeira e dou um gole na cerveja. Essa porra tem gosto de vômito.
Acho que eu vou vomitar.
Há algumas pessoas vestidas de palhaço andando por aí (como eles conseguem circular com tanta facilidade no meio desse mar de gente?) Eles carregam uma caixinha com papéis recortados, para que as pessoas mandem bilhetes umas para as outras. Uma espécie de correio elegante.
Sinto vontade de pegar um papel na caixa e mandar alguma pessoa ir se fuder. Não sei quem. Qualquer pessoa merece ser mandada a ir se fuder essa noite. Talvez aquela garota de vestido azul-real.
Eu não gosto de azul-real.
Chamo o palhaço e peço um bilhete, e ele me diz que custa cinquenta centavos. Mas não vou gastar cinquenta centavos para mandar alguém ir se fuder, então mando o próprio palhaço, por cobrar tão caro em um pedaço de papel.
Não me sinto mais leve.
Como eu vim parar aqui?
Olho em volta procurando algum rosto conhecido, mas estou tão bêbada que se olhar eu mesma no espelho, nunca vou me reconhecer.
Estou com tanta raiva. Quem é aquela filha da puta que ele está beijando?
Vou beijar o primeiro cara que me pedir, seja ele quem for, seja ele como for. Vou beijar até mesmo se for uma mulher tão bêbada quanto eu. Eu não sou lésbica, apenas estou zangada.
Alguém me cutuca, como se pudesse ler meus pensamentos, e pede para me beijar.
Era um rapaz e ele tinha uma mancha perto da boca que tanto podia ser apenas uma mancha quanto um inseto estranho. Reparar isso foi involuntário, é aquela primeira coisa que você pensa quando vê uma pessoa, nos primeiros milésimos de segundo que seus olhos a enxergam. Você não pensa "o que eu faço?", você pensa "uma mancha" ou "um bigode" ou "que monocelha indecente!"
É claro que eu não o beijei.
Concentro-me em ir embora. Isso está piorando.
Essa fumaça está me deixando enjoada.
Acho que vou vomitar.
Tenho a brilhante ideia de apalpar meus bolsos e verifico que tenho uma chave de carro.
Isso explica muita coisa. Eu vim de carro. Eu tenho um carro. O mundo faz todo sentido agora.
Não tenho forças para levantar da cadeira. Mesmo porque, estou incapaz de dirigir assim.
Começaram a tocar aquela tal de Amy Wine alguma coisa. Não consigo me lembrar do nome dela.
Não consigo me lembrar meu próprio nome.
Me lembro de ter vindo com alguém. É, parece que eu vim com alguma amiga.
Me levanto e me deixo ser levada pela maré de pessoas dançantes.
Nenhum rosto me é familiar.
Agora estão tocando Elis. Você sabe, aquela música "minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo que fizemos..." Que tipo de bar é esse?
Não posso ir embora assim. Vou bater no primeiro poste que aparecer na minha frente. Ou não vou ser capaz nem de achar meu carro. Há alguns minutos eu não sabia se tinha um carro.
Me pergunto se isso pode ficar pior. Olho para o teto e vejo que tem uma mancha de infiltração, provavelmente debaixo da caixa d'água. Sim, pode ficar pior. O teto pode desabar em uma enxurrada. Uma cena e tanto.
Não tenho um puto no bolso para pagar um taxi.
Alguém me cutuca, de novo. "Uma cicatriz."
Mas eu conheço aquela cicatriz. Eu conheço aquele rosto. É ele.
- Quem é aquela filha da puta? - pergunto.
Ele dá risada e diz alguma coisa que eu não consigo ouvir, porque a música está muito alta. Quem se importa?
- Me leva embora?
Ele faz que sim com a cabeça e me leva no meio da multidão, me segurando pelo braço. Assim parece mais fácil chegar à porta.
- Puxa, que noite ótima, não acha?
- Não - respondo. Dou outro gole na cerveja e jogo a garrafa no gramado do estacionamento. Aquela porra tem mesmo gosto de vômito.
Nós entramos no carro dele, eu vejo o meu estacionado há alguns metros. Amanhã eu volto para buscar.
Sinto uma vontade grande de chorar. Que noite horrível, que vida horrível.
- Eu posso te dar um beijo? - ele diz.
Abaixo o vidro, sinto o ar gelado batendo no meu rosto.
Agora é oficial.
Vou vomitar.

sábado, 17 de julho de 2010

Pluma

Desejo coisas boas para minha alma e cores vivas para o mundo ao meu redor.
Portanto, mato o tempo que insiste em ser exato, retiro pétalas de flores que ousam ser perfeitas e pinto de alaranjado o pôr-do-sol apenas para poder me deitar na grama e saber que eu participei da mudança que eu quis ver.
Desejo sabor de chocolate para minha alma e água na boca pelo mundo ao meu redor.
Leio bilhetes que não foram escritos para mim e me coloco no lugar, não de quem recebeu, mas de quem escreveu. É bom sentir vontade de mandar um bilhete para alguém.
Respiro fundo a brisa que sopra em algum sonho lúcido e concluo que não é ruim estar sozinho essa noite ou em outra noite qualquer.
E assim, me deixo ir. Deixo que minha subconsciência desenhe figuras tingidas de lilás, verde e momentos. E vou.
Porque vida é pluma, e nós somos o vento - nada mais do que o vento.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Neblina

Quando você se deita na cama e não consegue ver mais nada no escuro, e o único som é o do seu coração batendo, pelo que ele bate?
Do que você sentirá falta?
Talvez daquele cheiro que corta seu peito por dentro, aperta sua garganta e esquenta seus olhos, mas que mesmo assim você quer continuar sentindo, pois é tão vital quanto o ar - ou mais.
Você se cobrirá até a cabeça porque a solidão te dá frio e se encolherá na cama, buscando algum tipo de calor, ignorando o som da chuva batendo na janela, pedindo para entrar.
O banho quente matinal fará sua pele experimentar uma sensação tão prazerosa quanto ridícula - o arrepio.
O amargo do café nunca contrastou tão bem com o doce do açúcar, assim como o doce do chocolate combina bem com o sabor cítrico do morango.
E você sairá na neblina, tentará fechar o casaco até o pescoço e perceberá que isso não faz cessar o frio, mas não se importa, afinal. O frio não é tão ruim assim, não quando se tem um motivo para estar imerso nele, com o nariz vermelho e os olhos brilhantes.
Beberá uma xícara de chocolate quente e sentirá as veias da sua garganta dilatando com o calor, o sangue correndo das artérias para o coração, e do coração para as artérias, num ciclo infinito e voltará a se perguntar, inconscientemente, enquanto lê alguma notícia sobre balões no jornal, pelo que seu coração bate.
E talvez você encontre a resposta quando o telefone toca, ou quando há no rádio uma canção em especial que te obrigue a parar todos os pensamentos.
Sentirá frio novamente, tentará apertar o casaco novamente e, ao fim, parará de lutar contra esse sentimento, assim como desistirá de fechar o casaco para lutar contra o frio porque, de repente... é amor.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Gelo

Sabe, o inverno me faz ver a verdade - você foi. Porque quando eu estremeço de frio, não há quem me ofereça o casaco ou me aqueça em braços incrivelmente quentes.
O inverno me lembra o gosto do gelo na boca. O gelo que adoça o paladar e deixa sua língua sensível é o mesmo gelo que te afoga em frio quando está escuro ou, na melhor das hipóteses, racha seus lábios em uma noite fria de lua minguante.

Ruas velhas dessa cidade vazia e eu passo por elas observando tudo da janela de um veículo qualquer. O velho que sai do armazem pela manhã e coloca a placa na calçada com a promoção de frutas frescas. E esse velho, de repente, para. Não por vontade própria, apenas congela no meio do movimento, a placa ainda não foi colocada no chão, ele ainda está curvado, os pés apoiando o peso do corpo, mas ele não se mexe. E não foi só o velho que parou, mas todo o resto do mundo. Os carros nas ruas, os pássaros pairam no ar, congelados e o mesmo acontece com a névoa branca que de repente não é mais úmida e se transformou em poeira.
Saio pela janela do veículo indeterminado. A porta não abre.
Enquanto eu me preocupava com meus problemas, tão pequenos e insignificantes quanto essas gotículas frias, havia outros pensamentos perdidos e eu consigo agora ver todos, como se fossem desenhos desbotados desenhados na atmosfera fria.
O velho do armazém pensava no sabor do algodão doce de um circo da sua infância.
A moça do outro lado da rua, vestida de bailarina, teve seu beijo interrompido. Os lábios do rapaz ainda estão nos dela, mas não há rapaz algum ali. É apenas uma lembrança triste.
A criança que pensa em um balão preto, o qual ela nunca viu. A vontade estúpida e sem explicação de estourá-lo.
O cachorro que deseja com tanta ganância um mero osso, mas é um desejo tão simples e intenso que me faz pensar se estou ficando louco.
Um carro a poucos metros de um muro gasto e a preocupação do motorista a respeito do tempo. Quanto tempo ainda tem?
Há um buraco no muro. Eu espio o outro lado, curioso, e ali está o Universo - todos os planetas, estrelas, nebulosas, e galáxias, e galáxias e mil sóis. Todos parados, como se o tempo fosse um mero detalhe. Mas o tempo parou de passar, afinal.
Todos os relógios de todas as torres do mundo congelaram seus ponteiros em posições aleatórias. São tantas horas em uma cidade úmida da Inglaterra, e algumas horas mais tarde em uma cidade quente da Austrália. Nova Iorque nunca pareceu tão quieta - o som não se propaga sem movimento.
O buraco no muro se fecha e alguém surge ao meu lado, me oferecendo um casaco. Só então percebo que também estou congelado, junto com o resto do Universo que ainda não me foi permitido verificar.

Abro os olhos e tudo se reconstitui, volta à sua forma original, convencional. O veículo continua se movimentando, o velho colocou a placa no chão, a bailarina enchugou uma lágrima e o Universo voltou ao seu lugar, deixou de se esconder atrás de muros, tomou uma lufada de ar para dentro de seus pulmões negros e infinitos e continuou a se expandir e se afastar lentamente, como as gotículas que deixaram de ser poeira e voltaram a ser meras gotículas úmidas e sem importância.
Então quer dizer que há outras coisas acontecendo, mesmo com a dura verdade - você foi.

Sabe, o inverno me faz pensar coisas estranhas.

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