sexta-feira, 19 de junho de 2015

Estrelas douradas

Lembro-me de estar na terceira série do ensino fundamental e, se você fizesse todas as suas tarefas e se comportasse bem durante o dia, ganhava uma estrela dourada em um placar de cartolina. Se você conseguisse completar cinco estrelas até o final da semana (o que significava fazer todas as tarefas e ser um bom aluno todos os dias), a professora te presenteava com um bombom ou algum outro prêmio bacana no final da sexta-feira.

Era legal. Mantinha os alunos motivados. Incentivava a ser um bom aluno. Recompensava o esforço e a responsabilidade que todo mundo tem que aprender a ter desde cedo. Mas, enquanto a professora distribuía bombons para os bons-bons alunos, sabe o que não era legal? Não ganhar um bombom porque você não havia sido bom o suficiente.

Eu era uma dessas crianças. Raramente fazia minhas tarefas, afinal eu mal tinha oito anos de idade e a televisão, o videogame e as brincadeiras na rua me pareciam mais apropriadas para a minha idade do que armar e efetuar somas e subtrações. Meu comportamento inquieto e distraído me mandou à diretoria algumas vezes, onde tive que assinar um tal de Livro Negro que supostamente seria mostrado à polícia no final do bimestre. Meus crimes eram: não fez a tarefa, conversou muito durante a aula, levantou-se enquanto a professora estava explicando e ficou fazendo macaquices para fazer a turma rir. É óbvio que eu nunca ganhei uma estrela dourada e, enquanto as crianças corrigiam suas tarefas em voz alta junto à professora, eu olhava ao redor e me perguntava como deveria ser a sensação de ser um bom aluno, de dar respostas certas, de ter seu nome sucedido de estrelas douradas, de ganhar prêmios no final da semana.

Mais tarde, eu desisti de uma faculdade simplesmente porque não parecia a coisa certa a ser feita com meu tempo livre. Eu provavelmente não iria trabalhar com aquilo, só não odiava uma disciplina e, como se tudo isso não fosse o bastante, o ambiente era hostil, eu detestava quase toda a minha turma e o resto da faculdade e era correspondido, embora de forma desproporcional. Quando eu finalmente desisti, ouvi coisas que me fizeram lembrar da terceira série. Eu não iria ganhar estrelas douradas. Eu não iria ganhar bombons. Eu iria para o Livro Negro que seria mostrado a mim mesmo todos os dias para que eu refletisse sobre a minha falta de bom comportamento e de responsabilidade. Hoje, depois de ter passado em outro vestibular e estar em um novo curso, ouço ameaças disfarçadas de frases de apoio dos meus familiares e amigos: "Estou muito orgulhoso(a) de você. Vê se não desiste dessa vez, hem! Não vá decepcionar o/a (insira aqui um grau de parentesco)."

Após cinco anos de fumo constante, eu decidi parar. Nem tanto pela minha saúde, confesso. Tenho vinte e dois anos e todo mundo que já teve a minha idade sabe que a gente pensa que nunca vai morrer ou adoecer e que esse tipo de coisa só acontece com os outros. Parei de fumar pelo cheiro que ficava em mim, pela forma como as outras pessoas me olhavam quando descobriam que eu fumava, pelo sermão incessável do meu pai sobre o cheiro que ficava na casa, pelas críticas da minha mãe sobre como eu parecia um velho nojento e rançoso. Eu parei de fumar pelos outros. Eu parei de fumar pelas estrelinhas douradas, pela luz que se acendia nos rostos alheios quando eu dava a notícia, pela sensação de ser uma pessoa boa, normal, limpa e cheirosa.

Se eu desistir do curso em que estou agora porque acho que não tem nada a ver com o que eu quero para a minha vida, haverá olhares e comentários de desaprovação desesperada. Se eu voltar a fumar, as pessoas balançarão suas cabeças para o lado, lamentando que uma pessoa tão jovem e inteligente precise de uma muleta para se apoiar nos momentos de estresse e depressão.

Em um sentido amplo, somos todos crianças ansiando pelo reconhecimento, pelo tapinha nas costas, pela indulgência dos outros, pela satisfação de quem sequer parou para pensar no que estamos sentindo. Somos educados desde cedo para corresponder a expectativas que não são nossas. Mas, no final das contas, o que as outras pessoas sabem sobre a sua dor e as suas lutas?

As pessoas pensam que incentivo tem a ver com prêmios e menções honrosas, mas tem mais a ver com ser deixado em paz do que com qualquer outra coisa. Motivação é ter sua própria consciência no controle, e não o sentimento de ingratidão e de culpa por levar uma legião de investidores voluntários junto com você caso você falhe. Reconhecimento é se olhar no espelho e saber que você é bom o suficiente simplesmente por ter tentado e que, caso tenha falhado, foi porque você é humano. E humanidade se mede com suor, lágrimas, sangue e liberdade de espírito, e não com estrelas douradas.

Não pretendo desistir do curso em que estou e me sinto melhor por ter parado de fumar. Meus trabalhos estão em dia e minhas provas são tratadas com a devida atenção e responsabilidade. Mas, se um dia eu decidir que as coisas não estão boas do jeito que estão, reservarei-me no direito de mudar minha própria vida e tomar minhas decisões sem aviso prévio, sem justificativas para os outros, sem carta de autorização assinada. Cada um de nós sabe qual é o mérito em nossas perdas e em nossos ganhos. E cada um de nós tem o direito de decidir por quais estrelas douradas vale a pena lutar.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sobre a queda


Cair é uma das experiências mais traumáticas que passamos pela vida. Você está caminhando e, quando se dá conta, não existe mais nada ali para te apoiar. Sempre que alguém cai é porque acredita que a um passo à frente haverá mais chão, haverá mais um degrau, haverá caminhos livres de obstáculos.

Não é diferente nas quedas metafóricas. Passamos a vida inteira tentando atravessar cordas bambas. É melhor não olhar para baixo, focar em seu destino final, respirar fundo e acreditar no pouco de chão que você tem para pisar. O problema é que nem sempre conseguimos nos manter de pé. Perdemos o equilíbrio por qualquer coisa, qualquer corrente de vento produzida por palavras que não esperávamos ouvir, por coisas que não queríamos ver, por tratamentos que não merecíamos receber, por notícias que nunca imaginamos saber.

De repente, não há mais chão para te segurar e, em questão de minutos, você assiste enquanto seus pés mergulham no abismo profundo e escuro do desconhecido. Você mal consegue gritar com a força que te puxa para baixo. Você tenta se apegar a qualquer coisa que esteja nas bordas do abismo: galhos, objetos, lembranças, pessoas -- qualquer coisa que possa interromper a queda.

No entanto, por mais difícil e traumático que pareça, cair é fácil, simples, rápido. Você não faz nenhum esforço para isso: a gravidade te puxa para baixo, seu corpo obedece às leis da física. Não é algo ativo: você simplesmente espera pelo momento em que algo interromperá sua queda e ela acabe. O verdadeiro trabalho não está na queda: está no chão frio e duro da realidade. Está nos ossos quebrados, está nas feridas, está no sangue e nas lágrimas derramadas, está na reunião de forças para ficar de pé de novo.

E depois que seu corpo foi esmagado pela gravidade e remendado para que pudesse funcionar de novo, a parte mais difícil da queda se inicia: juntar o que era importante e caiu junto com você, tirar a poeira dos olhos, escalar o abismo, agarrar-se a qualquer raiz exposta nas paredes dele e, mesmo com a dor e com o peso do que você está trazendo de volta, puxar-se para cima para encontrar terra firme novamente, adaptar-se à luz forte da realidade e encontrar maneiras de sobreviver sem um pedaço tão familiar e confortável do chão.

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