sexta-feira, 28 de maio de 2010

Fones de ouvido

Estavam dentro do carro, ele dirigindo em uma longa estrada, ela logo ao lado com os fones no ouvido.
Quando olhou para o lado, assim, como quem não quer nada, percebeu que ele mexia a boca. Apertou pause no seu iPod.
- O que disse?
Ele a fuzilou com os olhos.
- Como assim, "o que disse"? Não estava me ouvindo?
- Não. Eu estava ouvindo música.
- Você nunca me ouve!
- E você nunca me olha. Se olhasse, veria que não estava te ouvindo.
- Acho que estamos indo a caminho do fim.
- Não, querido, estamos indo para a casa dos seus pais.
- Não brinque, eu estou falando sério.
- Eu também estou. Ou você está me levando para outro lugar?
- Cale a boca!
- Como? - ela ficou chocada.
- Mandei calar a boca.
- Cale a boca você, idiota.
- Não me mande calar a boca!
- Não me mande calar a boca você!
Fez-se silêncio por alguns minutos.
- O que você dizia quando eu estava com os fones?
- Se não estivesse com eles, teria me ouvido.
- Sim, mas eu estava, portanto não te ouvi. Diga.
- Dizia que você está gorda.
- O quê?
- Sabe quantos quilos você pesa?
Mas ela não respondeu. Não sabia quantos, mas sabia que eram muitos acima do seu peso ideal.
- Não se atreva a me chamar de gorda! Já deu uma olhada na sua barriga?
- É menor que a sua.
- Mas é maior do que deveria ser.
- Cale a boca.
- Cale a boca você.
Ele estacionou o carro no meio do caminho.
- Chegamos.
Ela olhou ao redor, mas só havia mato e estrada.
- Chegamos onde?
- Ao fim.
- O quê?!
- Não quero mais.
- Não me quer mais? É o que você está dizendo?
- Sim. Não te quero mais.
- Ótimo.
- Ótimo.
Fez-se mais silêncio, e então ele abriu a boca. Algo nela (talvez sua intuição feminina) acusou que ele iria começar a reclamar, e ela decidiu intervir.
- Não comece.
- Me deixe apenas falar.
- Não. Você deixará de existir em 3, 2, 1...
Deu play em seu iPod novamente e perdeu-se em seu mundo particular. Não queria saber o que ele tinha a dizer. Ele já havia dito tudo. E um cara que não a queria mais, não merecia ser ouvido. Não tanto quanto a música merecia.
Ele deu a volta no carro e os dois voltaram ao começo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Amanhecer - de verdade

A janela está aberta e o ar que entra por ela é frio.
Como é irônica a passagem do tempo. Como é irônica a maneira como passamos por ele.
A luz de alguma coisa no mundo (ou pode ser no Universo, não desconsidero a Lua) projeta sombras sem sentido nessas paredes de cores gastas.
Mas não me assusta mais estar aqui sozinho. Não me assusta mais acordar durante a noite e não sentir um calor familiar ao meu lado.
Parou de fazer efeito em meus ouvidos o som da sua voz, e meu coração não bate mais forte quando sinto seu cheiro em minutos aleatórios dos meus dias e eu não vou acordar em pânico caso você resolva entrar em meu sonho durante a noite.
Deixo você ir, escapar por meus dedos como a areia lenta de uma ampulheta. Deixo você se afogar no sal da minha indiferença e não vou mais olhar para um passado que não está mais pendurado em nenhuma parede da minha memória.
Queimo as molduras onde você se encontra, bebo o licor do meu orgulho e agora eu entendo que a verdade é apenas essa, e que essa é a única maneira de encarar a verdade: você foi um ponto final. Você foi - e ponto final.
Pulo a linha nesse caderno incerto, rasgado e rasurado que é a vida, e inicio um novo parágrafo, onde seu nome não será mais citado.
Preencho as lacunas em meu cérebro com outros odores, com outras temperaturas e outras frequências eletromagnéticas. Governo o movimento dos meus tímpanos com outros timbres, outras batidas musicais, outro tipo de som que não tem harmonia com você.
O ar frio, antes dito, anuncia a chegada de um inverno frio, solitário.
Mas há um amanhecer novo, todos os dias.
Em algum lugar do mundo (ou pode ser do Universo, não desconsidero o Sol) existe luz e calor.
Mas não mais em você.
Pode ir agora.

domingo, 23 de maio de 2010

Fantasma

Sentado no meio das árvores, cantava uma música fria, sem palavras.
Ouvia o som ao seu redor mas não sabia distinguir de onde vinha, qual idioma era, se era fala, se era canção, se era barulho. Não sabia se vinha de fora ou se era produzido dentro.
Algumas pessoas passavam por ali, mas não parecia se incomodar. Apenas cantava.
Cantava por aqueles que estiveram ali um dia, mas que se foram.
Cantava pelos momentos que não queria esquecer.
Cantava pela vida que um dia teve. A mesma vida que perdeu.
Cantava, também (e principalmente) pelo amor.
Pois haviam lhe dito, durante toda a vida, que o amor faz parte da alma e que é infinito. Mas todos estavam errados. Porque quando olhava para si mesmo, não via amor algum. Era apenas uma alma. Com lembranças, com uma canção fria e sem palavras. Mas nenhum amor.
Se alguém passa por aquele campo hoje, no meio da cidade, com árvores que esconderam momentos secretos, com orvalho frio sobre as folhas, com um céu estrelado e cinzento logo acima, pode ouvir o canto do fantasma - se sentar-se na grama fria e fechar os olhos, escutando de alma para alma.
Porque ele ainda canta ali.
Canta por tudo que é efêmero: o tempo, a vida e o amor.

~~~~~~~~
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

(Tu tens um medo - Cecília Meireles)



P.S.: O ponto-b fez 2 anos no último dia 15. Não que isso seja grande coisa, porque o próprio blog não tem a intenção de ser grande coisa. Mas gostaria de agradecer sinceramente a todos aqueles que passam por aqui de vez em quando, que acompanham meus textos (mesmo eles não sendo tão bons assim), e que eventualmente deixam um comentário com palavras carinhosas. Vocês são meu grande incentivo e minha fonte de inspiração. Obrigado a todos! Bruno F. Bertoni.

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