terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Correnteza

 
Você deixou todas as portas abertas quando correu para procurar abrigo. Não é de se espantar que tudo está uma bagunça agora: a tempestade da qual você fugia trouxe as folhas secas, a poeira, os insetos e a escuridão para dentro da casa. E agora você está trancado em algum cômodo sem janelas, procurando por alguma rachadura que te traga luz.

Mas você não pode ficar aqui para sempre. Logo a água fria e escura entrará pelos vãos da porta e preencherá seu esconderijo. Logo você irá se afogar em todas as coisas das quais você está fugindo. Você precisa abrir a porta e encarar a tempestade.

Você queimou todas as pontes acreditando que aquelas coisas permaneceriam do outro lado e que elas jamais aprenderiam a nadar. Não percebe que elas estavam o tempo todo dentro de você: mergulhadas no oceano verde-escuro dos seus olhos, navegando lentamente pelo seu sangue, penetrando em todas as suas células? Você se rendeu à correnteza e, quando percebeu, estava longe demais para tentar chegar a qualquer lugar. Se você soubesse o que sabe agora, não teria se olhado no espelho bem antes e encontrado uma forma de lutar de dentro para fora, e não o contrário?

Todos esses dias você esteve correndo, fechando seus olhos com força quando se lembrava do que estava fugindo, amaldiçoando os caminhos pelos quais teve de passar para chegar até aqui, evitando a responsabilidade atribuída aos seus próprios passos. Não há mais para onde correr, vê? O muro com o qual você se deparou é alto demais. Ele está cercado pelo oceano, pelas árvores escuras, por uma floresta formada por todas essas vozes que te assombram.

Você precisa se perdoar, mas como poderá fazer isso se está o tempo todo seguindo em frente, mas olhando pelo espelho retrovisor? Todos os dias você ouve sua própria voz te acusar por cada falha e você não consegue calar essa voz dentro da sua cabeça e substituí-la por uma mais gentil. Então você sucumbirá por cada erro que cometeu, até que toda a sua energia vital escape pelos seus poros e você acabe fazendo parte da escuridão que te rodeia e que te assusta.

Por isso, corra. Levante-se do chão, deixe as folhas caírem, esqueça-se de seus cabelos molhados pelas águas profundas e escuras, e corra para alcançar aquelas portas. Corra para a tempestade, em direção ao coração dela, e tente acalmá-la. Corra antes que as portas se fechem. Entenda que você é imperfeito e que não há nada de errado nisso. Aceite que a vida possui lugares estranhos e que, por mais assustadores que eles sejam, dentro deles encontramos pedaços de quem somos.

Não olhe para trás com raiva, com medo, com arrependimento. Seu coração sabia exatamente o que estava fazendo naqueles dias. Não o julgue, não cobre dele agora, que está tudo feito, que está tudo velho. Se você soubesse o que você sabe agora, você teria feito tudo diferente, e essa é a melhor coisa que você pode esperar do passado: que você tenha aprendido com ele, que ele tenha servido para alguma coisa.

A vida é assim, mesmo: a gente se quebra em mil pedaços, nossos cacos se perdem em meio a outros cacos, e quando a gente consegue se remontar, percebe que há pedaços faltando, mas que outros pedaços estão preenchendo as lacunas. Somos sempre remendados, mas sempre novos.

Agora vá. Apresse-se. Entregue-se ao oceano. Mergulhe no mais profundo dele, até que encontre todas aquelas coisas importantes que você deixou lá no fundo. Traga o melhor de si de volta para a luz. Sem medo de se afogar, sem medo de se perder mais ainda. Sinta a água gelada lamber sua pele, tomando cuidado para não se deixar levar por ela.

Depois volte. Com o mesmo brilho nos olhos e com algo mais. E tudo que se perdeu irá se desfazer e se transformar no nada que um dia te assombrou. O que resta são os sapatos limpos que você vai calçar para continuar em seu caminho, sem a lama, sem o medo, sem olhar no retrovisor o tempo todo. Seguirá apenas o mapa nas cicatrizes que te transformaram em quem você é.

E, então, você fechará aquelas portas. Abrirá todas as janelas. Deixará o ar puro e doce entrar em seus pulmões. Observará tudo o que via antes, mas do lado de fora. E entenderá que, enquanto você corria, você deixou de aproveitar a paisagem.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Sobrevivente

 
Li que estou indo bem nessa coisa de viver porque sobrevivi a 100% dos meus dias ruins. Estou aqui agora, mesmo depois de tudo o que aconteceu, de todos os acidentes que sofri, de todas as vezes em que meu coração parou de bater. Eu dei a volta por cima, eu encontrei maneiras de me manter são e salvo e aqui estou eu, um sobrevivente da vida.

O que aconteceu com você e como você sobreviveu? Quando todas as portas estavam fechadas e você teve que lutar pela sua vida dentro de um ambiente tão fechado e pequeno quanto um corpo. Tudo o que você fez foi se arrastar pelo chão frio e duro, em um quarto escuro e cheio de objetos pontiagudos no chão, ferindo os pedaços de você que ainda estavam inteiros. Você via a luz entrar por baixo da porta e sabia que do outro lado as coisas estavam melhores, mas você simplesmente não conseguia sair de si mesmo e chegar até lá.

Até que um dia você se cansou daquela luta e deitou-se com as costas no chão, cuidando apenas de continuar respirando. Foi tudo que você pôde fazer naqueles dias. Você não teve outra escolha a não ser essa. Renunciar. Entregar-se. Deixar que sua alma fosse punida em um purgatório que parecia não ter fim.

Mas todas as feridas se curam um dia, das mais superficiais às que são tão profundas que ultrapassam os limites do que é físico, material. Elas se fecham. Aos poucos o quarto começa a ficar mais iluminado. Gradualmente você consegue se ajoelhar, e então se colocar de pé. E então você abre a porta e caminha para fora, louco por um copo d'água e por um pouco de oxigênio. Parabéns: você sobreviveu.

O que não está escrito é que sobreviver não significa sair ileso. Você pode ter se levantado dali e encontrado uma saída de 100% dos seus piores dias, mas o que você traz na pele não é o brilho e a glória dos sobreviventes, mas as cicatrizes de quem perdeu uma briga. Cada pedaço de quem você é está preso por suturas e fita adesiva. A sua alma é um templo para os fantasmas que você quer manter longe de você. Você sobreviveu, mas seus cabelos estarão para sempre molhados pelas gotas vorazes da tempestade.

Nossos gritos de vitória são também pedidos de socorro porque, por trás deles, há dor autêntica, sangue coagulado, lágrimas secas, chamadas de emergência. Mas você está indo bem: você sobreviveu a 100% dos seus piores dias. Você está indo bem em manter seus pedaços colados uns aos outros. Você está indo bem por não desmoronar.

Porque quando isso acontece - quando, por algum motivo, um pedaço minúsculo se solta de você -, a dor recomeça. Tudo desaba ao mesmo tempo. A sobrevivência se transforma em um fardo, você quase se arrepende de ter lutado por ela. E é então que você percebe que você nunca sobreviverá a 100% das coisas que aconteceram com você; que você ainda está no chão, lutando; que a vida é frágil demais para resistir a certas feridas; que alguns danos são irreparáveis e que aquela porta esteve fechada o tempo todo.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A cidade fantasma


Estou andando por aquelas ruas de novo e meu coração está em chamas. Estou perdido e não consigo me lembrar como chegar nos lugares em que eu deixei pedaços de mim. Eu vim parar aqui de novo. Ou talvez eu nunca tenha saído daqui. Dessa cidade, dessa rua tão íngreme que não é nada estranho eu ter perdido o equilíbrio. Eu me lembro de cada lugar. Eu me lembro de cada ferida. E eu queria que alguém aparecesse e segurasse a minha mão, e me fizesse entender porque é que eu fico voltando aqui o tempo todo.

Eu poderia recolher todas as peças e ir para casa. Recomeçar. Deitar para dormir e acordar como se eu fosse outra pessoa, vivendo outra vida. Mas eu estou aqui, no meio da rua. Um carro poderia passar por cima de mim - ou através de mim - a qualquer momento. Mas tudo está estático. Nada se move, exceto eu. Há um trem parado no trilho, bem quando eu passo diante dele. Há um carro dobrando a esquina e ele ficará assim para sempre. No entanto, meu coração bate dentro do meu peito à medida em que sangra. Porque estou cansado de segurar, de manter minha mão dentro do peito, estancando a ferida. Estou cansado de sentir o sangue circulando pelas minhas veias sem ter por onde sair. Eu abro mão. Eu sangro até morrer no meio daquela rua, e de repente eu estou lá de novo, onde tudo começou, com a mão estancando o sangramento de novo.

Eu não consigo me livrar disso. É algo que vem e vai o tempo todo, algo que se expande e que depois se contrai dentro de mim como um pulmão. Eu ainda estou perdido aqui dentro, e algo me diz que eu ficarei perdido aqui por toda a eternidade, como a impressão de um fantasma que se repete, se repete, se repete, porque era aquilo que ele fazia todos os dias e ele não se deu conta de que morreu, então ele repete, repete, repete. É um ciclo. É um pesadelo. É uma cidade fantasma, onde nenhum rosto me é familiar, mas cada pedaço do chão faz parte de mim.

Eu tentei deixar ir embora e recuperar meus sentidos. Estendi minha mão e renunciei cada pedaço que ainda estava comigo, deixando que o vento levasse como uma oferenda àquele lugar. Mas a textura desses dias insiste em criar atrito contra a minha pele, e eu consigo sentir tudo de novo, ouvir cada palavra dita, e tudo começa a ganhar forma novamente, reconstruindo-se em um caleidoscópio de formas e cores, reencarnando-se em cada célula do meu corpo. E eu morro de novo.

Quando foi que eu estive aqui pela última vez? Que cheiro tinha? Quando foi que eu te vi sorrir pela última vez, com a leveza das tardes de sábado, com a excitação das noites de sexta? Não faz tanto tempo assim. Como foi que eu consegui voltar quando eu me perdi? Respiro fundo, tentando refazer os caminhos em minha mente.

O rio, a subida, o cheiro de café e de pão. As manchas e os objetos de plástico. O banco do passageiro. Eu sorrio. Meus olhos se fecham. Tudo estava bem, não estava? Eu estava feliz, embora eu pudesse morrer daquilo a qualquer momento. E então deixou de estar, o chão começou a ruir e a tempestade veio, meus pulmões se tornaram pequenos e frágeis demais para os gritos que eu tinha guardado dentro deles.

Um beijo de despedida, meu estômago revirado, a falta que eu senti. Lembro-me disso, e então me lembro do resto. Lembro-me disso e me lembro de tudo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Corra!

Faça o que tem de fazer, e então corra. Os dias são curtos e a vida é longa, então corra. Pega o que ficou no chão. Deita a cabeça em um travesseiro macio. Respira fundo e, quando o sol nascer, a luz vai entrar aos poucos, lamber os seus olhos, penetrar em seus poros, sangrar suas feridas. Corra porque não há muito tempo, vê?

O planeta está dando voltas ao redor de si mesmo e ao redor do sol em uma velocidade tão grande que arrancaria nossas cabeças se conseguíssemos senti-la. E talvez seja por isso que perdemos nossas cabeças o tempo todo, que nos perdemos tão rapidamente, que nos dissolvemos dentro de nós mesmos como partículas minúsculas de vida que se oxidam com o tempo.

As ruas estão cheias de pessoas que correm, pássaros e cães, carros e sapatos. Levamos conosco o que podemos, o que conseguimos carregar. Nossos pesos, nossas dores, nossos corações, nossos cérebros embebidos em sangue e memórias. Lá em cima, absorvendo o que transpiramos, as nuvens se condensam umas nas outras e correm pelo azul infinito - que às vezes é cinza, às vezes é rosa, às vezes é nada.

Corra porque as mentiras se transformam em borrões quando você corre. Não há tempo para olhar para elas, de qualquer forma. Engula cada uma delas como comprimidos, absorva a medicina contida nelas - placebos que nos fazem resistir ao tédio. Corra porque você já tem mais de vinte anos, e logo terá mais de trinta. Corra porque seu corpo não aguentará muito tempo parado, tendo de lidar com sua própria carga.

Sua coluna vertebral se entortou enquanto você olhava para o tempo, sentado diante de tudo que sequer existe: todas essas palavras, todas essas pessoas, todos esses sorrisos e conquistas e beijos de amor que não duraram nem o tempo de um pensamento. Suas pernas ficaram fracas, seu coração se partiu em cacos, seus pulmões estão queimados, seu cérebro implodiu. Se ao menos você tivesse corrido. Se não tivesse ficado aqui para ver tudo ir aos ares. Se ao menos você tivesse fugido.

Quando esse dia terminar, do que você sentirá falta? O que fará seu coração doer? Quais promessas e barganhas você fará ao universo? Quantas fantasias você criará, só para ter o prazer de despedaçá-las como pétalas secas mais tarde? Do que você desejará correr?

Vai doer como o inferno, então corra, sem olhar para trás. Pegue tudo o que conseguir e corra. Corra o mais rápido que puder. Corra como o tempo, como o vento, corra como se fosse salvar sua vida.

E, então, pule.

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