quarta-feira, 14 de julho de 2010

Gelo

Sabe, o inverno me faz ver a verdade - você foi. Porque quando eu estremeço de frio, não há quem me ofereça o casaco ou me aqueça em braços incrivelmente quentes.
O inverno me lembra o gosto do gelo na boca. O gelo que adoça o paladar e deixa sua língua sensível é o mesmo gelo que te afoga em frio quando está escuro ou, na melhor das hipóteses, racha seus lábios em uma noite fria de lua minguante.

Ruas velhas dessa cidade vazia e eu passo por elas observando tudo da janela de um veículo qualquer. O velho que sai do armazem pela manhã e coloca a placa na calçada com a promoção de frutas frescas. E esse velho, de repente, para. Não por vontade própria, apenas congela no meio do movimento, a placa ainda não foi colocada no chão, ele ainda está curvado, os pés apoiando o peso do corpo, mas ele não se mexe. E não foi só o velho que parou, mas todo o resto do mundo. Os carros nas ruas, os pássaros pairam no ar, congelados e o mesmo acontece com a névoa branca que de repente não é mais úmida e se transformou em poeira.
Saio pela janela do veículo indeterminado. A porta não abre.
Enquanto eu me preocupava com meus problemas, tão pequenos e insignificantes quanto essas gotículas frias, havia outros pensamentos perdidos e eu consigo agora ver todos, como se fossem desenhos desbotados desenhados na atmosfera fria.
O velho do armazém pensava no sabor do algodão doce de um circo da sua infância.
A moça do outro lado da rua, vestida de bailarina, teve seu beijo interrompido. Os lábios do rapaz ainda estão nos dela, mas não há rapaz algum ali. É apenas uma lembrança triste.
A criança que pensa em um balão preto, o qual ela nunca viu. A vontade estúpida e sem explicação de estourá-lo.
O cachorro que deseja com tanta ganância um mero osso, mas é um desejo tão simples e intenso que me faz pensar se estou ficando louco.
Um carro a poucos metros de um muro gasto e a preocupação do motorista a respeito do tempo. Quanto tempo ainda tem?
Há um buraco no muro. Eu espio o outro lado, curioso, e ali está o Universo - todos os planetas, estrelas, nebulosas, e galáxias, e galáxias e mil sóis. Todos parados, como se o tempo fosse um mero detalhe. Mas o tempo parou de passar, afinal.
Todos os relógios de todas as torres do mundo congelaram seus ponteiros em posições aleatórias. São tantas horas em uma cidade úmida da Inglaterra, e algumas horas mais tarde em uma cidade quente da Austrália. Nova Iorque nunca pareceu tão quieta - o som não se propaga sem movimento.
O buraco no muro se fecha e alguém surge ao meu lado, me oferecendo um casaco. Só então percebo que também estou congelado, junto com o resto do Universo que ainda não me foi permitido verificar.

Abro os olhos e tudo se reconstitui, volta à sua forma original, convencional. O veículo continua se movimentando, o velho colocou a placa no chão, a bailarina enchugou uma lágrima e o Universo voltou ao seu lugar, deixou de se esconder atrás de muros, tomou uma lufada de ar para dentro de seus pulmões negros e infinitos e continuou a se expandir e se afastar lentamente, como as gotículas que deixaram de ser poeira e voltaram a ser meras gotículas úmidas e sem importância.
Então quer dizer que há outras coisas acontecendo, mesmo com a dura verdade - você foi.

Sabe, o inverno me faz pensar coisas estranhas.

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