terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lapso



Você. De todas as pessoas possíveis. De todo mundo que você conhece, e também daqueles que nem sonha que existem. Parado em um parapeito, em um terraço, como se fosse pular, mas você sabe que não vai. Você sabe disso, mas como poderia saber de todo o resto? Da rota de colisão na qual estava dirigindo em altíssima velocidade, do choque iminente e inevitável. Você não poderia imaginar.

E de todas as cartas, e as lágrimas em meio de sorrisos, de um humor bobo e auto-indulgente, de toda a grama grudada em seus sapatos dos caminhos longos que trilhou, você estava sentado esperando a tempestade e então foi eletrocutado em campo aberto. A febre, a dor, a somatização de cada confiança despedaçada pelo choque, os gemidos baixo de socorro!, as mãos trêmulas de medo e de raiva. A água lambendo seu rosto, em um contraste amargo com o fogo queimando debaixo de suas pálpebras tão pesadas, tão cansadas.

Você viu seu coração virar uma pedra, logo você!, justo você!, que nunca comprou a ideia de que a essência de alguma coisa pudesse mudar sob pressão. Contrariando toda a química e toda a física, você não conseguiu salvar sequer uma gota de sanidade, sequer um tijolo do templo construído em um solo duvidoso de mentiras. Lendo cada sílaba no lábio de alguém, tentando encontrar inconsistências em um monólogo ridículo e nada interessante, tentando consultar um dicionário de palavras desordenadas e sem nexo, e rezando para um deus em que você nunca acreditou para que tudo aquilo não fosse real, para que fosse pagar sua própria língua, para que estivesse muito errado. E não estava.

E, mesmo assim, o tempo continuou sendo digerido em seu estômago vazio, tentando encontrar espaço em seus pulmões intoxicados, procurando uma forma de correr junto com seu sangue que agora estava verde escuro. Seus pensamentos te agarravam pelo pescoço e não te deixavam dormir. Havia um peso morto dentro de cada célula viva em você, uma tonelada insuportável de coisas indigestas que seu sistema não conseguiu nem digerir nem expelir. E você se entregou. E você pulou.

Você. De todas as pessoas possíveis. De todos os tempos possíveis. Você. Quem acreditaria?

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