sábado, 4 de outubro de 2014

A ilha

Parado como um guarda, fiscalizando minunciosamente cada rosto que surgia, cada corpo da sua altura, cada sorriso largo em contraste com olhos semicerrados. Mas quem eu estava guardando, afinal? Eu mesmo. De braços cruzados, tentando controlar o tremor que subia por meu corpo e que pouco tinha a ver com o ar-condicionado no mínimo. Era só o medo, mesmo. Esse velho amigo. O medo do que você iria pensar sobre meu cabelo estranho, sobre meus olhos fundos margeados por manchas roxas de anos de privação de sono, sobre minha boca desidratada e sobre a camiseta amassada, a melhor que eu encontrei de última hora para a ocasião. O medo mudou quando o tempo foi ficando curto, os passos deveriam ter ficado velozes, os elevadores e as escadas rolantes não traziam ninguém que sequer lembrasse você.

Era claro que você não apareceria. Não é culpa sua não ter aparecido, porque eu sabia. Sabia como sei que qualquer palavra que eu te disser vai se chocar contra a sua armadura, fazer um barulhinho metálico e cair no chão lentamente, como uma mosca quando se choca em uma lâmpada. Sei que nunca vou poder habitar o escuro dentro de você, nunca vou ser capaz de iluminar um pouco seus olhos, nunca vou conseguir penetrar sua pele limpa com qualquer sentimento que eu ouse ter.

E você pode me pedir para te provar, que eu vou ter argumentos infinitos a meu favor. A começar pela chuva, que me faz pensar em você, mas que te causa talvez um pouco mais do que uma melancolia agridoce. Depois, tenho o tempo e as circunstâncias para comprovar minha conclusão. E as palavras que sequer ecoaram em seu cérebro, as confissões que não elevaram seus batimentos cardíacos a nenhuma batida a mais, alguém saberia se estivesse medindo. E eu não estava. Porque acreditava que apenas falar era suficiente, como você iria lidar com tudo aquilo era um problema seu. O importante é falar, é o que dizem nos filmes, nos livros e nas músicas. Fale. Seja bravo. Tenha coragem. Fale a verdade. Mas a verdade que ninguém te conta é que o som não se propaga no vácuo. Não há palavras que preencham um vazio autoinfligido. Não há número que multiplicado por zero tenha um resultado diferente de zero.

E, por falar em números, foi uma hora e quinze, se você quer saber. O relógio me contou isso,e o olhar ansioso da operadora de caixa que havia reservado seu ingresso, e as pessoas que iam chegando e se encontrando e se desculpando pelo atraso com seus amigos. Eu era uma ilha, no meio de um mar de gente em movimento, em sorrisos, em perfumes, em felicidades talvez efêmeras, mas ninguém poderia negá-la. Eu era uma ilha tentando ser preenchida por um náufrago e, ao mesmo tempo, eu era um náufrago, rezando para que você aparecesse, para que eu tivesse um solo firme de certeza de que você teria ao menos a consideração de aparecer, de cumprir uma promessa, de se desculpar por todas as quebras. Eu sei como é isso porque não foi a primeira vez que eu me senti assim, mas você não sabe, eu tenho certeza disso, e eu acho que você nunca vai saber.

Você nunca vai saber, porque se você diz a alguém que estará lá às nove, às seis da tarde a pessoa está olhando no relógio. Às quinze para as sete, ela está debaixo do chuveiro, deixando o sabonete fixar-se na pele mais do que o normal. O shampoo escorre pelos cabelos como cera derretendo, e a pessoa se arrepende por não ter ido cortar o cabelo naquela semana, se ao menos ela soubesse que iria te ver... Quando são oito horas, ela está provando diversas roupas, tentando encontrar dentro do armário a peça que esconda com mais eficácia o medo, a insegurança, o nervosismo e a ansiedade. Então ela escolhe uma roupa confortável e bonita, arruma o cabelo que ela não cortou com o máximo de cuidado possível, mas o spray acabou, droga, o spray acabou, ele vai gostar menos de mim com esse cabelo, a pessoa pensa. Como se fizesse alguma diferença. Então ela pega o carro e sai correndo pela cidade com medo de se atrasar, mesmo sabendo que é cedo. Ele já deve estar lá, ela imagina quando chega. Sobe duas escadas, arranhando o corrimão de borracha como se tentasse depositar ali todo o seu pânico. E te espera. Até que as pessoas entrem na sala. Até que o filme comece. Até que o cheiro de pipoca comece a se dissolver no ar até desaparecer, porque não tem mais ninguém comprando pipoca, não tem mais ninguém comprando ingresso, não tem mais ninguém esperando por ninguém. Só essa pessoa. Olhando ao seu redor, fiscalizando qualquer rosto que ouse aparecer na frente dela, e nenhum deles é você, e nenhum deles será você, porque você nunca vai saber como é isso, você com seu cabelo perfeito, você com seus olhos doces, você com seu jeito engraçado de falar, você com sua risada gostosa, você com seus quase dois metros de autossuficiência e orgulho.

Eu ainda estou lá, de certa forma, e isso só aumenta a sensação que eu tenho de ser o maior idiota do universo. Ainda estou lá, plantado como uma árvore antiga, esperando que você apareça. Ainda estou lá tentando resolver uma equação com as horas, te encaixando no lugar das incógnitas, um x enorme, vermelho, que eu fico tentando decifrar o tempo todo, esperando que eu vá encontrar uma resposta a qualquer momento.

Mas a verdade é que eu nunca vou saber a reposta pela qual você não apareceu. E você nunca vai me salvar daquele mar de gente que ainda passa por mim, e eu também nunca vou poder salvar alguém que prefere pintar sua própria imagem com cores tristes do que abrir os olhos para a luz colorida que pode entrar pela janela se você parar para abrir as cortinas um instante que seja. E a mais dolorosa de todas as verdades é que eu vou ser sempre uma ilha deserta, cheia de pedras e de buracos, cheia de mensagens em garrafas que não dizem absolutamente nada, e no final da noite, inundado por um mar de questionamentos e aflições, ninguém vai me salvar de mim.

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