terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Correnteza

 
Você deixou todas as portas abertas quando correu para procurar abrigo. Não é de se espantar que tudo está uma bagunça agora: a tempestade da qual você fugia trouxe as folhas secas, a poeira, os insetos e a escuridão para dentro da casa. E agora você está trancado em algum cômodo sem janelas, procurando por alguma rachadura que te traga luz.

Mas você não pode ficar aqui para sempre. Logo a água fria e escura entrará pelos vãos da porta e preencherá seu esconderijo. Logo você irá se afogar em todas as coisas das quais você está fugindo. Você precisa abrir a porta e encarar a tempestade.

Você queimou todas as pontes acreditando que aquelas coisas permaneceriam do outro lado e que elas jamais aprenderiam a nadar. Não percebe que elas estavam o tempo todo dentro de você: mergulhadas no oceano verde-escuro dos seus olhos, navegando lentamente pelo seu sangue, penetrando em todas as suas células? Você se rendeu à correnteza e, quando percebeu, estava longe demais para tentar chegar a qualquer lugar. Se você soubesse o que sabe agora, não teria se olhado no espelho bem antes e encontrado uma forma de lutar de dentro para fora, e não o contrário?

Todos esses dias você esteve correndo, fechando seus olhos com força quando se lembrava do que estava fugindo, amaldiçoando os caminhos pelos quais teve de passar para chegar até aqui, evitando a responsabilidade atribuída aos seus próprios passos. Não há mais para onde correr, vê? O muro com o qual você se deparou é alto demais. Ele está cercado pelo oceano, pelas árvores escuras, por uma floresta formada por todas essas vozes que te assombram.

Você precisa se perdoar, mas como poderá fazer isso se está o tempo todo seguindo em frente, mas olhando pelo espelho retrovisor? Todos os dias você ouve sua própria voz te acusar por cada falha e você não consegue calar essa voz dentro da sua cabeça e substituí-la por uma mais gentil. Então você sucumbirá por cada erro que cometeu, até que toda a sua energia vital escape pelos seus poros e você acabe fazendo parte da escuridão que te rodeia e que te assusta.

Por isso, corra. Levante-se do chão, deixe as folhas caírem, esqueça-se de seus cabelos molhados pelas águas profundas e escuras, e corra para alcançar aquelas portas. Corra para a tempestade, em direção ao coração dela, e tente acalmá-la. Corra antes que as portas se fechem. Entenda que você é imperfeito e que não há nada de errado nisso. Aceite que a vida possui lugares estranhos e que, por mais assustadores que eles sejam, dentro deles encontramos pedaços de quem somos.

Não olhe para trás com raiva, com medo, com arrependimento. Seu coração sabia exatamente o que estava fazendo naqueles dias. Não o julgue, não cobre dele agora, que está tudo feito, que está tudo velho. Se você soubesse o que você sabe agora, você teria feito tudo diferente, e essa é a melhor coisa que você pode esperar do passado: que você tenha aprendido com ele, que ele tenha servido para alguma coisa.

A vida é assim, mesmo: a gente se quebra em mil pedaços, nossos cacos se perdem em meio a outros cacos, e quando a gente consegue se remontar, percebe que há pedaços faltando, mas que outros pedaços estão preenchendo as lacunas. Somos sempre remendados, mas sempre novos.

Agora vá. Apresse-se. Entregue-se ao oceano. Mergulhe no mais profundo dele, até que encontre todas aquelas coisas importantes que você deixou lá no fundo. Traga o melhor de si de volta para a luz. Sem medo de se afogar, sem medo de se perder mais ainda. Sinta a água gelada lamber sua pele, tomando cuidado para não se deixar levar por ela.

Depois volte. Com o mesmo brilho nos olhos e com algo mais. E tudo que se perdeu irá se desfazer e se transformar no nada que um dia te assombrou. O que resta são os sapatos limpos que você vai calçar para continuar em seu caminho, sem a lama, sem o medo, sem olhar no retrovisor o tempo todo. Seguirá apenas o mapa nas cicatrizes que te transformaram em quem você é.

E, então, você fechará aquelas portas. Abrirá todas as janelas. Deixará o ar puro e doce entrar em seus pulmões. Observará tudo o que via antes, mas do lado de fora. E entenderá que, enquanto você corria, você deixou de aproveitar a paisagem.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Sobrevivente

 
Li que estou indo bem nessa coisa de viver porque sobrevivi a 100% dos meus dias ruins. Estou aqui agora, mesmo depois de tudo o que aconteceu, de todos os acidentes que sofri, de todas as vezes em que meu coração parou de bater. Eu dei a volta por cima, eu encontrei maneiras de me manter são e salvo e aqui estou eu, um sobrevivente da vida.

O que aconteceu com você e como você sobreviveu? Quando todas as portas estavam fechadas e você teve que lutar pela sua vida dentro de um ambiente tão fechado e pequeno quanto um corpo. Tudo o que você fez foi se arrastar pelo chão frio e duro, em um quarto escuro e cheio de objetos pontiagudos no chão, ferindo os pedaços de você que ainda estavam inteiros. Você via a luz entrar por baixo da porta e sabia que do outro lado as coisas estavam melhores, mas você simplesmente não conseguia sair de si mesmo e chegar até lá.

Até que um dia você se cansou daquela luta e deitou-se com as costas no chão, cuidando apenas de continuar respirando. Foi tudo que você pôde fazer naqueles dias. Você não teve outra escolha a não ser essa. Renunciar. Entregar-se. Deixar que sua alma fosse punida em um purgatório que parecia não ter fim.

Mas todas as feridas se curam um dia, das mais superficiais às que são tão profundas que ultrapassam os limites do que é físico, material. Elas se fecham. Aos poucos o quarto começa a ficar mais iluminado. Gradualmente você consegue se ajoelhar, e então se colocar de pé. E então você abre a porta e caminha para fora, louco por um copo d'água e por um pouco de oxigênio. Parabéns: você sobreviveu.

O que não está escrito é que sobreviver não significa sair ileso. Você pode ter se levantado dali e encontrado uma saída de 100% dos seus piores dias, mas o que você traz na pele não é o brilho e a glória dos sobreviventes, mas as cicatrizes de quem perdeu uma briga. Cada pedaço de quem você é está preso por suturas e fita adesiva. A sua alma é um templo para os fantasmas que você quer manter longe de você. Você sobreviveu, mas seus cabelos estarão para sempre molhados pelas gotas vorazes da tempestade.

Nossos gritos de vitória são também pedidos de socorro porque, por trás deles, há dor autêntica, sangue coagulado, lágrimas secas, chamadas de emergência. Mas você está indo bem: você sobreviveu a 100% dos seus piores dias. Você está indo bem em manter seus pedaços colados uns aos outros. Você está indo bem por não desmoronar.

Porque quando isso acontece - quando, por algum motivo, um pedaço minúsculo se solta de você -, a dor recomeça. Tudo desaba ao mesmo tempo. A sobrevivência se transforma em um fardo, você quase se arrepende de ter lutado por ela. E é então que você percebe que você nunca sobreviverá a 100% das coisas que aconteceram com você; que você ainda está no chão, lutando; que a vida é frágil demais para resistir a certas feridas; que alguns danos são irreparáveis e que aquela porta esteve fechada o tempo todo.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A cidade fantasma


Estou andando por aquelas ruas de novo e meu coração está em chamas. Estou perdido e não consigo me lembrar como chegar nos lugares em que eu deixei pedaços de mim. Eu vim parar aqui de novo. Ou talvez eu nunca tenha saído daqui. Dessa cidade, dessa rua tão íngreme que não é nada estranho eu ter perdido o equilíbrio. Eu me lembro de cada lugar. Eu me lembro de cada ferida. E eu queria que alguém aparecesse e segurasse a minha mão, e me fizesse entender porque é que eu fico voltando aqui o tempo todo.

Eu poderia recolher todas as peças e ir para casa. Recomeçar. Deitar para dormir e acordar como se eu fosse outra pessoa, vivendo outra vida. Mas eu estou aqui, no meio da rua. Um carro poderia passar por cima de mim - ou através de mim - a qualquer momento. Mas tudo está estático. Nada se move, exceto eu. Há um trem parado no trilho, bem quando eu passo diante dele. Há um carro dobrando a esquina e ele ficará assim para sempre. No entanto, meu coração bate dentro do meu peito à medida em que sangra. Porque estou cansado de segurar, de manter minha mão dentro do peito, estancando a ferida. Estou cansado de sentir o sangue circulando pelas minhas veias sem ter por onde sair. Eu abro mão. Eu sangro até morrer no meio daquela rua, e de repente eu estou lá de novo, onde tudo começou, com a mão estancando o sangramento de novo.

Eu não consigo me livrar disso. É algo que vem e vai o tempo todo, algo que se expande e que depois se contrai dentro de mim como um pulmão. Eu ainda estou perdido aqui dentro, e algo me diz que eu ficarei perdido aqui por toda a eternidade, como a impressão de um fantasma que se repete, se repete, se repete, porque era aquilo que ele fazia todos os dias e ele não se deu conta de que morreu, então ele repete, repete, repete. É um ciclo. É um pesadelo. É uma cidade fantasma, onde nenhum rosto me é familiar, mas cada pedaço do chão faz parte de mim.

Eu tentei deixar ir embora e recuperar meus sentidos. Estendi minha mão e renunciei cada pedaço que ainda estava comigo, deixando que o vento levasse como uma oferenda àquele lugar. Mas a textura desses dias insiste em criar atrito contra a minha pele, e eu consigo sentir tudo de novo, ouvir cada palavra dita, e tudo começa a ganhar forma novamente, reconstruindo-se em um caleidoscópio de formas e cores, reencarnando-se em cada célula do meu corpo. E eu morro de novo.

Quando foi que eu estive aqui pela última vez? Que cheiro tinha? Quando foi que eu te vi sorrir pela última vez, com a leveza das tardes de sábado, com a excitação das noites de sexta? Não faz tanto tempo assim. Como foi que eu consegui voltar quando eu me perdi? Respiro fundo, tentando refazer os caminhos em minha mente.

O rio, a subida, o cheiro de café e de pão. As manchas e os objetos de plástico. O banco do passageiro. Eu sorrio. Meus olhos se fecham. Tudo estava bem, não estava? Eu estava feliz, embora eu pudesse morrer daquilo a qualquer momento. E então deixou de estar, o chão começou a ruir e a tempestade veio, meus pulmões se tornaram pequenos e frágeis demais para os gritos que eu tinha guardado dentro deles.

Um beijo de despedida, meu estômago revirado, a falta que eu senti. Lembro-me disso, e então me lembro do resto. Lembro-me disso e me lembro de tudo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Corra!

Faça o que tem de fazer, e então corra. Os dias são curtos e a vida é longa, então corra. Pega o que ficou no chão. Deita a cabeça em um travesseiro macio. Respira fundo e, quando o sol nascer, a luz vai entrar aos poucos, lamber os seus olhos, penetrar em seus poros, sangrar suas feridas. Corra porque não há muito tempo, vê?

O planeta está dando voltas ao redor de si mesmo e ao redor do sol em uma velocidade tão grande que arrancaria nossas cabeças se conseguíssemos senti-la. E talvez seja por isso que perdemos nossas cabeças o tempo todo, que nos perdemos tão rapidamente, que nos dissolvemos dentro de nós mesmos como partículas minúsculas de vida que se oxidam com o tempo.

As ruas estão cheias de pessoas que correm, pássaros e cães, carros e sapatos. Levamos conosco o que podemos, o que conseguimos carregar. Nossos pesos, nossas dores, nossos corações, nossos cérebros embebidos em sangue e memórias. Lá em cima, absorvendo o que transpiramos, as nuvens se condensam umas nas outras e correm pelo azul infinito - que às vezes é cinza, às vezes é rosa, às vezes é nada.

Corra porque as mentiras se transformam em borrões quando você corre. Não há tempo para olhar para elas, de qualquer forma. Engula cada uma delas como comprimidos, absorva a medicina contida nelas - placebos que nos fazem resistir ao tédio. Corra porque você já tem mais de vinte anos, e logo terá mais de trinta. Corra porque seu corpo não aguentará muito tempo parado, tendo de lidar com sua própria carga.

Sua coluna vertebral se entortou enquanto você olhava para o tempo, sentado diante de tudo que sequer existe: todas essas palavras, todas essas pessoas, todos esses sorrisos e conquistas e beijos de amor que não duraram nem o tempo de um pensamento. Suas pernas ficaram fracas, seu coração se partiu em cacos, seus pulmões estão queimados, seu cérebro implodiu. Se ao menos você tivesse corrido. Se não tivesse ficado aqui para ver tudo ir aos ares. Se ao menos você tivesse fugido.

Quando esse dia terminar, do que você sentirá falta? O que fará seu coração doer? Quais promessas e barganhas você fará ao universo? Quantas fantasias você criará, só para ter o prazer de despedaçá-las como pétalas secas mais tarde? Do que você desejará correr?

Vai doer como o inferno, então corra, sem olhar para trás. Pegue tudo o que conseguir e corra. Corra o mais rápido que puder. Corra como o tempo, como o vento, corra como se fosse salvar sua vida.

E, então, pule.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Estrelas douradas

Lembro-me de estar na terceira série do ensino fundamental e, se você fizesse todas as suas tarefas e se comportasse bem durante o dia, ganhava uma estrela dourada em um placar de cartolina. Se você conseguisse completar cinco estrelas até o final da semana (o que significava fazer todas as tarefas e ser um bom aluno todos os dias), a professora te presenteava com um bombom ou algum outro prêmio bacana no final da sexta-feira.

Era legal. Mantinha os alunos motivados. Incentivava a ser um bom aluno. Recompensava o esforço e a responsabilidade que todo mundo tem que aprender a ter desde cedo. Mas, enquanto a professora distribuía bombons para os bons-bons alunos, sabe o que não era legal? Não ganhar um bombom porque você não havia sido bom o suficiente.

Eu era uma dessas crianças. Raramente fazia minhas tarefas, afinal eu mal tinha oito anos de idade e a televisão, o videogame e as brincadeiras na rua me pareciam mais apropriadas para a minha idade do que armar e efetuar somas e subtrações. Meu comportamento inquieto e distraído me mandou à diretoria algumas vezes, onde tive que assinar um tal de Livro Negro que supostamente seria mostrado à polícia no final do bimestre. Meus crimes eram: não fez a tarefa, conversou muito durante a aula, levantou-se enquanto a professora estava explicando e ficou fazendo macaquices para fazer a turma rir. É óbvio que eu nunca ganhei uma estrela dourada e, enquanto as crianças corrigiam suas tarefas em voz alta junto à professora, eu olhava ao redor e me perguntava como deveria ser a sensação de ser um bom aluno, de dar respostas certas, de ter seu nome sucedido de estrelas douradas, de ganhar prêmios no final da semana.

Mais tarde, eu desisti de uma faculdade simplesmente porque não parecia a coisa certa a ser feita com meu tempo livre. Eu provavelmente não iria trabalhar com aquilo, só não odiava uma disciplina e, como se tudo isso não fosse o bastante, o ambiente era hostil, eu detestava quase toda a minha turma e o resto da faculdade e era correspondido, embora de forma desproporcional. Quando eu finalmente desisti, ouvi coisas que me fizeram lembrar da terceira série. Eu não iria ganhar estrelas douradas. Eu não iria ganhar bombons. Eu iria para o Livro Negro que seria mostrado a mim mesmo todos os dias para que eu refletisse sobre a minha falta de bom comportamento e de responsabilidade. Hoje, depois de ter passado em outro vestibular e estar em um novo curso, ouço ameaças disfarçadas de frases de apoio dos meus familiares e amigos: "Estou muito orgulhoso(a) de você. Vê se não desiste dessa vez, hem! Não vá decepcionar o/a (insira aqui um grau de parentesco)."

Após cinco anos de fumo constante, eu decidi parar. Nem tanto pela minha saúde, confesso. Tenho vinte e dois anos e todo mundo que já teve a minha idade sabe que a gente pensa que nunca vai morrer ou adoecer e que esse tipo de coisa só acontece com os outros. Parei de fumar pelo cheiro que ficava em mim, pela forma como as outras pessoas me olhavam quando descobriam que eu fumava, pelo sermão incessável do meu pai sobre o cheiro que ficava na casa, pelas críticas da minha mãe sobre como eu parecia um velho nojento e rançoso. Eu parei de fumar pelos outros. Eu parei de fumar pelas estrelinhas douradas, pela luz que se acendia nos rostos alheios quando eu dava a notícia, pela sensação de ser uma pessoa boa, normal, limpa e cheirosa.

Se eu desistir do curso em que estou agora porque acho que não tem nada a ver com o que eu quero para a minha vida, haverá olhares e comentários de desaprovação desesperada. Se eu voltar a fumar, as pessoas balançarão suas cabeças para o lado, lamentando que uma pessoa tão jovem e inteligente precise de uma muleta para se apoiar nos momentos de estresse e depressão.

Em um sentido amplo, somos todos crianças ansiando pelo reconhecimento, pelo tapinha nas costas, pela indulgência dos outros, pela satisfação de quem sequer parou para pensar no que estamos sentindo. Somos educados desde cedo para corresponder a expectativas que não são nossas. Mas, no final das contas, o que as outras pessoas sabem sobre a sua dor e as suas lutas?

As pessoas pensam que incentivo tem a ver com prêmios e menções honrosas, mas tem mais a ver com ser deixado em paz do que com qualquer outra coisa. Motivação é ter sua própria consciência no controle, e não o sentimento de ingratidão e de culpa por levar uma legião de investidores voluntários junto com você caso você falhe. Reconhecimento é se olhar no espelho e saber que você é bom o suficiente simplesmente por ter tentado e que, caso tenha falhado, foi porque você é humano. E humanidade se mede com suor, lágrimas, sangue e liberdade de espírito, e não com estrelas douradas.

Não pretendo desistir do curso em que estou e me sinto melhor por ter parado de fumar. Meus trabalhos estão em dia e minhas provas são tratadas com a devida atenção e responsabilidade. Mas, se um dia eu decidir que as coisas não estão boas do jeito que estão, reservarei-me no direito de mudar minha própria vida e tomar minhas decisões sem aviso prévio, sem justificativas para os outros, sem carta de autorização assinada. Cada um de nós sabe qual é o mérito em nossas perdas e em nossos ganhos. E cada um de nós tem o direito de decidir por quais estrelas douradas vale a pena lutar.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sobre a queda


Cair é uma das experiências mais traumáticas que passamos pela vida. Você está caminhando e, quando se dá conta, não existe mais nada ali para te apoiar. Sempre que alguém cai é porque acredita que a um passo à frente haverá mais chão, haverá mais um degrau, haverá caminhos livres de obstáculos.

Não é diferente nas quedas metafóricas. Passamos a vida inteira tentando atravessar cordas bambas. É melhor não olhar para baixo, focar em seu destino final, respirar fundo e acreditar no pouco de chão que você tem para pisar. O problema é que nem sempre conseguimos nos manter de pé. Perdemos o equilíbrio por qualquer coisa, qualquer corrente de vento produzida por palavras que não esperávamos ouvir, por coisas que não queríamos ver, por tratamentos que não merecíamos receber, por notícias que nunca imaginamos saber.

De repente, não há mais chão para te segurar e, em questão de minutos, você assiste enquanto seus pés mergulham no abismo profundo e escuro do desconhecido. Você mal consegue gritar com a força que te puxa para baixo. Você tenta se apegar a qualquer coisa que esteja nas bordas do abismo: galhos, objetos, lembranças, pessoas -- qualquer coisa que possa interromper a queda.

No entanto, por mais difícil e traumático que pareça, cair é fácil, simples, rápido. Você não faz nenhum esforço para isso: a gravidade te puxa para baixo, seu corpo obedece às leis da física. Não é algo ativo: você simplesmente espera pelo momento em que algo interromperá sua queda e ela acabe. O verdadeiro trabalho não está na queda: está no chão frio e duro da realidade. Está nos ossos quebrados, está nas feridas, está no sangue e nas lágrimas derramadas, está na reunião de forças para ficar de pé de novo.

E depois que seu corpo foi esmagado pela gravidade e remendado para que pudesse funcionar de novo, a parte mais difícil da queda se inicia: juntar o que era importante e caiu junto com você, tirar a poeira dos olhos, escalar o abismo, agarrar-se a qualquer raiz exposta nas paredes dele e, mesmo com a dor e com o peso do que você está trazendo de volta, puxar-se para cima para encontrar terra firme novamente, adaptar-se à luz forte da realidade e encontrar maneiras de sobreviver sem um pedaço tão familiar e confortável do chão.

domingo, 29 de março de 2015

Wonderland


Andando pelo verde brilhante e cheio de esperança, me distraio e caio em um buraco de coelho. Escuro, profundo, infinito. Dou voltas ao redor do meu próprio corpo, assim como a Terra faz, enquanto sou sugado para dentro da escuridão. Não sei onde estou, não sei onde é o chão, não sei se posso me agarrar a algo a fim de interromper a queda e voltar à superfície brilhante.

Isso acontece o tempo todo e aconteceu de novo. Eu deveria saber. Deveria ter olhado para o chão enquanto andava. Deveria ter me concentrado no caminho. Deveria ter tapado meus ouvidos. Eu não sabia o que acontece com mentes curiosas? Enquanto caio, lembranças tão numerosas quanto as estrelas povoam meu cérebro, drenam minha energia, me jogam para todos os lados, menos para cima.

O baque no chão frio e duro me paralisa por alguns instantes. Olhando ao meu redor, há apenas uma pequena porta e uma mesa cheia de biscoitos com palavras de ordem. Mordo um pedaço de um deles e descubro que é amargo, seco, mal consigo engolir. Mas, quando o faço, meu tamanho começa a ser reduzido e, de repente, tenho o mesmo diâmetro de um pensamento: sou breve, sou minúsculo, sou solitário na mente do buraco.

Atrás daquela porta há uma Wonderland. É bem parecida com a que eu conhecia metros acima, antes de tropeçar e cair. Mas há diferenças: as flores estão mortas, o céu está cinza, a luz não atinge nenhum corpo. Há olhos por todas as partes, observando e solicitando um pouco de atenção. Há monstros escondidos por trás da floresta. Há questões que, em um contexto amplo, poderiam ser tratadas como filosóficas, mas aqui são apenas sussurros incômodos dentro do meu crânio me obrigando a pensar na mais difícil de todas as questões - Quem és tu? -, e depois a fumaça colorida e entorpecente me tirando do eixo central.

Eu não sei quem eu sou. Não sei como vim parar aqui. Enquanto corro, tentando encontrar uma saída, os espinhos das rosas brancas tiram pedacinhos da minha pele e meu sangue as colore em um vivo vermelho carmim. Chego à uma clareira, entendo que há um jogo de cartas acontecendo. Jogo a mão que me foi dada. Não é muito boa, mas deve servir. Não tenho escolha.

Quando perco o jogo, um grito ecoa que perderei a cabeça. Desejo dizer que já a perdi há muito tempo, ou não estaria aqui embaixo. Mas minha voz está esmagada dentro da minha garganta. Nenhum grito de socorro me tirará daqui.

Estou no fundo do buraco, no lugar mais escuro, em um coração pulsante e negro que não é o meu, mas que poderia muito bem ser. Minha Wonderland foi destruída por dezenas de catástrofes. As flores em meu peito foram arrancadas violentamente. As cores em meus olhos foram sugadas com a minha energia vital.

E, quando me lembro daqueles olhos, daquele sorriso de Gato, das quedas anteriores, das mentiras escondidas por trás das portas minúsculas, entendo que minha Wonderland sou eu.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Cego

Dentro de mim, o tempo parece ter parado. E eu tropeço em cada minuto que ainda resta. Meus medos chamaram meu nome e eu respondi. Há um brilho escuro e opaco dentro dos meus olhos, um aperto sobre-humano na minha garganta, um pouco de sangue em meus pulmões. Minhas células que ainda estão vivas e meus neurônios que ainda respondem a algum sinal elétrico tentam se desfazer de mim, ser livres, encontrar abrigo e paz em qualquer outro lugar, menos nesse corpo complexo, colapsado, dolorido.

Eu perdi minhas outras guerras com tanta honestidade que cheguei a acreditar que nenhuma outra batalha pode ser ganha depois daquelas. E percebo que estou lutando sozinho quando olho ao meu redor. Não há um corpo ou uma alma que vai segurar minhas mãos ou me dar um abraço para que eu possa chorar o quanto eu precisar. Não há nenhuma palavra de afago, de consolo, de compreensão.
De repente, tudo parece estar sendo resolvido no grito, mas eu não quero gritar. Não quero pedir. Não quero implorar.

Então eu desisto aos poucos. Começo pelas letras que escrevi. Abro minhas mãos e deixo aqueles dedos serem livres para agarrarem o que quer que estejam procurando. Respiro fundo e tento absorver o pouco de oxigênio que sobrou depois de tantos soluços, tantas expirações, tanto afogamento. Tateio as paredes procurando por uma saída de emergência, porque tudo ficou tão escuro subitamente. É como se não houvesse mais volta.

Mas se houver, eu vou descobrir, e eu vou correr para fora dessa porta sem olhar para trás. Sem olhar para as peças que ainda ficaram no chão por não se encaixarem. Vou pular de um precipício, vou fingir que tenho asas, vou voar para longe disso tudo.

No entanto, percebo que a verdade está por trás dessa porta, com todas as respostas das perguntas que não tive coragem de fazer. Vejo a sombra de seus pés se movimentando na fresta entre o chão e a porta. Tenho medo do momento em que ela decidir colocar suas mãos frias na fechadura e abrir o que me separa da luz cegante da realidade.

Mas, enquanto isso não acontece, é uma longa e torturante espera. E eu não sei se eu quero saber como isso acaba.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Atrás das grades


Seu primeiro habitat natural foi um berço rodeado de grades para que você não caísse durante a noite e se machucasse. Depois disso, veio a escola - um lugar no qual você passava seis horas por dia preso, acorrentado a uma cadeira, ouvindo outra pessoa ditar quais eram as coisas que você deveria fazer para ser bem-sucedido quando crescesse e, automaticamente, feliz. Você sobreviveu ao ensino médio e é provável que hoje passe horas dos seus dias ainda preso: dentro de uma sala na universidade ou em alguma empresa. E, nas horas vagas, nos sentamos diante de telas que nos passam uma mensagem extremamente clichê: a felicidade está dentro de um relacionamento amoroso. Teoricamente, só assim poderemos ser felizes para sempre.

Segurança. Sucesso. Felicidade. Amor. Estamos sempre procurando todas essas coisas, parece ser o objetivo principal das nossas vidas desde que nascemos. Por isso, nos colocam em berços, em escolas, diante de filmes e de livros que nos enfiam goela abaixo grandes mentiras. O resultado disso não poderia ser mais desastroso: nenhum de nós está feliz em hipótese alguma.

Porque o berço te fazia gritar para sair dele. A escola era um tédio. O escritório é um campo de guerra. E o amor, ah, o amor... Ninguém quer viver sem ele. Ninguém quer acordar um dia e descobrir que está sozinho, que não haverá uma mensagem de "bom dia" esperando na tela do celular, que o ingresso do cinema vai ser para uma pessoa só, que a virada do ano não vai ter beijo-da-sorte.

E quando finalmente encontramos alguém, enlouquecemos. Esquecemos completamente de quem somos. Moldamos uma vida ao redor daquela pessoa, fazemos planos para o futuro, acreditamos que há apenas um mundo para ser visto e conquistado. Você pode chamar isso de felicidade, mas se analisar profundamente, descobrirá que tem outro nome: medo. Estamos morrendo de medo da perda, do frio, das incertezas que um relacionamento traz.

Estamos morrendo de medo porque estamos presos. E, como um animal criado em cativeiro, talvez não saibamos sobreviver caso as grades caiam, caso precisemos encarar o mundo sozinhos, viver apenas da nossa própria companhia.

Talvez nunca estamos de fato felizes porque insistimos em procurar pela felicidade dentro de gaiolas: em anéis de compromisso, em carteiras assinadas, em resultados de vestibulares, em prisões disfarçadas de habitat natural. Olhe ao seu redor: nenhum ser preso dentro de uma jaula está feliz.

Há um momento na vida de todos nós em que é preciso aprender a caminhar com as próprias pernas. A honrar as asas que todos nós temos. E entender que o mundo é grande demais para aprisionar-se em partes tão pequenas dele. O céu é mais seguro que o chão. O voo é mais empolgante do que as correntes. E a liberdade é o único estado de espírito em que podemos ser quem somos de verdade.


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Previsão do Tempo

Se você fizer uma lista comparativa entre suas expectativas e suas realidades, se surpreenderá com um resultado cruel: as coisas nunca acontecem como as planejamos. Chove no dia da festa, sua calça rasga no caminho de um evento importante, um amor acaba quando você pensava que iria durar para sempre. A previsão do tempo anunciava chuva, mas não caiu uma gota. O relacionamento de quase dez anos de alguém que eu conheço acabou em um piscar de olhos. Situações promissoras na minha vida se provaram fiascos. Pessoas nas quais eu pensei que pudesse confiar mal lembram meu nome hoje. E eu sempre acordo na melhor parte de um sonho bom.

Isso significa que, no instante em que você delega algo para o acaso, suas chances de se decepcionar são enormes. Contamos com nossos planos, acreditamos que eles serão seguidos à risca, escrevemos o roteiro perfeito para nossas vidas. Mas nos esquecemos de adicionar o fator fundamental para tudo: o imprevisto. E a vida acontece em função dele.

E, no final das contas, quantos de nós temos um plano B ou C? Porque, e se você for pego de surpresa no meio do caminho, nas estradas desertas da vida, e depender apenas do que você tem na bagagem para se virar? E se você acordar um dia e descobrir que todos os seus planos foram levados pela enxurrada durante a noite? Você conseguiria sobreviver?

Praticamente nada nessa vida é garantido. As placas que insistimos em pintar com as direções certas muitas vezes estão mal posicionadas e nos levam a nada mais do que ruas sem saída e muros altos. Diante disso, é importante fazer o menor número de planos possível e, principalmente, moderar a velocidade com que seguimos em direção a eles para evitar o choque brusco.

É melhor aproveitar o que você tem enquanto você o tem, sem se preocupar com quanto tempo ainda terá, ou com que rumo aquilo irá tomar. Enquanto a tempestade não começa. Enquanto nada esteja rasgado. Enquanto seu coração ainda bate por aquilo. Porque, no momento em que as coisas se vão, elas se vão para sempre. E a única garantia que temos na vida é a de que hoje não vai durar muito tempo.

O que quer que aconteça

O que quer que aconteça, eu sempre vou me lembrar do seu sorriso. Das marcas das suas mãos que ficam no ar. Do cheiro que sai do seu pescoço e se imprime na minha pele. Do sol que nasceu e só nós dois estávamos olhando. Da sensação de estar em casa dentro de um abraço seu. Dos planetas alinhados dentro dos seus olhos. Da órbita que meu coração assumiu desde aquele dia.

A calma na tua voz sempre envenenará a minha loucura, o que quer que aconteça. O caos será uma linha reta e racional e o chão estará macio debaixo dos meus pés. Eu vou usar meu melhor sorriso, minha melhor voz, minha melhor tonalidade de aura. Nada vai me escurecer enquanto o tempo trouxer você.

Os dias passarão e eu me perguntarei se minhas palavras foram justas. O gosto na minha boca denunciará a sua presença. Os minutos sufocarão cada medo e cada fantasma. A leveza da sua pele amaciará todos os meus pesos. As letras se acumularão dentro de mim e, quando for demais, vazarão em forma de meias-verdades porque eu não sei te dizer tudo o que eu penso e sinto sem te assustar. Mas, o que quer que aconteça, eu encontrarei formas de te fazer ver.

Respiro profundamente quando me deito e sei que meus olhos se abrirão para um novo dia. Os mapas que eu andei traçando me trouxeram até aqui. As luzes que piscam nos faróis dos carros indicarão o caminho quando eu estiver perdido. Talvez você tenha que ir, talvez doa, talvez eu esteja me precipitando na beira do abismo. Mas, o que quer que aconteça, eu vou me lembrar de você.

O que eu quero que aconteça não está em minhas mãos, e eu vou presentear a vida com esse dilema. E, o que quer que ela decida, eu estarei aqui.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cronômetro

O medo é a pior parte. De olhar para trás e para frente e ver apenas pássaros mortos no lugar de um céu habitado de cores. Jurei para mim que não estaria neste lugar de novo. Que não rolaria mais um segundo na cama por causa disso. Que não machucaria meus braços por causa do medo. Que respiraria fundo e diria aquelas coisas que eu disse para mim quando estava limpo, curado dessa dependência que eu acabei criando quando os primeiros olhos se abriram para os meus.

Mas minha cama está cheia de pedras e meu estômago rejeita qualquer tentativa de sustento físico. Aquela velha toxina somatizada volta a correr em minhas veias e não há medicina que me cure disso. Nem mesmo a mulher que eu pago para me ouvir todas as semanas tem uma resposta, e eu acredito que essa seja a pior das aflições: a falta de respostas, de propósitos, de explicações. A tela do celular está escura, o led que anuncia as respostas não pisca, e foram inventar essa bendita confirmação de que a pessoa sabe o que você tem a dizer, o que não passa de uma confirmação profunda e cruel do silêncio e do eco.

Um número incontável de estrelas passa pela minha cabeça diariamente, mesmo (e especialmente) quando eu não estou prestando atenção nelas. A lua que movimenta as marés ajuda a produzir o vento que refresca uma primavera tão abafada quanto as minhas palavras. A gravidade me puxa para o chão quando eu não estou esperando. O Sol nasce e se põe diariamente com a mesma indiferença que me assombra nas pessoas. E mesmo assim, mesmo sendo testemunha do movimento da vida e das voltas do mundo, nada me prova que o tempo não tenha voltado e parado, que as coisas mudaram mas não continuaram sendo exatamente iguais, que meu cérebro transforma a realidade em uma linha cronológica eficiente.

E quanto tempo eu tenho? Se o cronômetro que dedos maldosos acionaram no momento daquele primeiro beijo conta os minutos restantes para meu colapso, quantos segundos eu ainda tenho antes que o agora inevitável desastre aconteça novamente?

Eu pensei que a vida fosse uma cachoeira na qual você lança as coisas e elas nunca mais voltam. Mas, depois de tanta água fria batendo em minhas canelas, eu percebo que a vida é um oceano gigante e que as coisas têm essa mania revoltante de voltar para você depois que você as lança e, no momento em que você pensa que as tem, o oceano as puxa de volta.

Nada que vem de um mar de imprevistos pode ficar para sempre. E cada passo que você dá para tentar segurá-la é uma forma infalível de se afogar.

sábado, 1 de novembro de 2014

Fantasmas


Dormir nunca foi a tarefa mais fácil do mundo para mim e, embora hoje eu tenha motivos razoáveis para isso, quando eu era criança, minha insônia tinha a ver com meu medo de fantasmas. Eu ficava deitado imóvel, mesmo com o abajur aceso, e eles tomavam conta da minha imaginação. Era como se meu medo não fosse apenas medo, mas um tipo de expectativa: eu sabia que eles iriam aparecer a qualquer momento, e ficava apenas deitado, coberto até o último fio de cabelo, esperando por isso.

Eles demoraram um pouco para se manifestar. Não foi na noite em que eu tinha seis, oito ou doze anos que isso aconteceu. Foi alguns anos depois, quando eu já era grande demais para temê-los. Hoje eu tenho vinte e dois anos, e qual não é minha surpresa quando percebo que estou rodeado por eles?

Sem que eu tivesse tempo para me esconder, meus fantasmas apareceram em todas as partes. Nas fotografias que eu nem lembrava mais que existiam. Nas músicas que deixei de ouvir há algum tempo, mas que sempre voltam a tocar quando não estou esperando. Nas tatuagens que fiz em meu corpo - cada uma delas é um fantasma. Nos sonhos loucos que meu cérebro insiste em exibir em sessões especiais. Nos números de telefone que não consigo deixar de saber de cor. Nas vozes dentro da minha cabeça. No jeito que eu falo, que eu acabei aprendendo com alguém e nunca consegui desaprender. Na caixa que eu guardo e que está cheia deles, em forma de cartas, passagens de ônibus, ingressos de cinema e outros suvenires.

E, ao contrário do que eu imaginava naquelas noites há mais de uma década, esses fantasmas nada têm a ver com pessoas mortas. Hoje, com um discernimento consideravelmente maior, consigo entender que meus fantasmas estão vigorosamente vivos. São pessoas que ainda levantam-se de suas camas todos os dias, vão para a faculdade ou para o trabalho, eventualmente assistem a algum filme no cinema - de vez em quando, ao mesmo filme e na mesma sala que eu, embora em sessões diferentes. Tem algo mais fantasmagórico do que isso?

O que me assombra aos vinte e dois anos não é o fato de que os mortos podem retornar ao nosso mundo em formas azuladas e nebulosas, mas a possibilidade de que algumas pessoas vivas cruzem meus caminhos, em carne, osso e desprezo; de que elas sequer se lembrem do meu nome em alguns anos; de que suas vidas sigam sem mim; de que eu seja enterrado vivo por elas e não tenha o direito de assombrá-las depois, exigindo explicações, demandando atenção e lembrança.

Cada pessoa tem fantasmas que gostaria de exorcizar de sua vida, e aqueles pelos quais acaba criando respeito, amor e/ou obsessão. De qualquer forma, o problema é que não há oração, mantra ou simpatia que os mantenham longe de nós. Quem tem um coração batendo no peito carrega a predisposição a enxergar fantasmas. Pare por alguns segundos e olhe ao seu redor. Quantos deles você consegue ver?

Eu disse que minha insônia atualmente não tem nada a ver com fantasmas. E eu não poderia estar mais errado. A diferença é que agora eu não tenho que esperar: eles sempre aparecem. Altos e claros.

"Band-aids não curam ferimentos de balas
Você pediu desculpas só para constar
Você vive assim, você vive com fantasmas."
- 'Bad Blood' - Taylor Swift.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Física

Eu sempre odiei física, mas tirava boas notas no colegial, mesmo sem estudar. Não era difícil para mim calcular a velocidade média, encontrar padrões de tempo, medir o deslocamento. Eu que sempre estou me perguntando se não estou indo rápido demais, eu que estou sempre preso às horas que faltam e às horas que passaram, eu que me desloco dentro de mim o tempo todo. Física era fácil. Eu sou um Einstein das emoções, o que é irônico, dada a desfuncionalidade da minha inteligência emocional.

Resiliência. É um termo da física que as pessoas aprenderam agora e está em tudo que é lugar. Outro dia vi uma entrevista sobre isso. Acho que foi na Fátima Bernardes. Mas é claro que ninguém estava falando de física na Fátima Bernardes às onze da manhã. O tema era superação, e por isso esse termo vem da física: a ideia é um elástico que acumula toda a energia sem sofrer modificações plásticas. Depois de ser puxado até seu limite, o elástico devolve a energia para o objeto e volta ao seu formato normal. Engraçado, né? Usam isso como exemplo pra falar da gente. Da gente que sente dor, da gente que sofre, da gente que perde coisas, da gente que se estica até o máximo que consegue sem arrebentar e, depois disso, nunca mais consegue ser o mesmo.

Eu nunca mais voltei ao meu formato inicial quando você me disse seu primeiro oi. E você sabe o quanto eu me estiquei para tentar te alcançar. Para tentar envolver meus braços ao seu redor, mesmo estando longe, só para te dar um pouco de apoio e carinho. Eu que fui lançado em trânsitos reais e imaginários só pra te encontrar. E quando eu chegava aí, física ou imaginariamente, você soltava o elástico, lembra? Eu voava milhares de quilômetros por hora, e sei disso porque eu fui um bom aluno em física: o deslocamento era enorme dentro de um intervalo de tempo tão curto. Em um instante, eu não estava mais nem mesmo dentro de mim.

Não, é claro que eu não voltava ao meu formato original. Quem olhar com cuidado para meus braços saberá disso. Tem marcas do elástico que você soltou em vários lugares. Cicatrizes que vão embora da minha pele em pouco tempo, mas isso é um assunto da biologia, e não da física. A física afirma: a força foi grande demais para não ter deixado nenhuma marca, o atrito foi muito intenso para não ter causado nenhuma queimadura.

E você pode achar que eu não sinto nada, que é tudo muito superficial e que não me atinge de nenhuma forma, mas isso não é verdade: eu sinto, sim. Quando leio algo que você escreveu, quando ouço alguma música que me lembra você, quando uma foto sua invade algum dia útil sem me pedir licença, eu sinto um peso enorme, e é um peso externo, físico mesmo. Parece estar amarrado no meu queixo, porque ele começa a puxar meu rosto pra baixo. Primeiro eu sinto perto da gengiva inferior, uma espécie de pressão sanguínea pulsante. Depois, meus lábios começam a curvar-se para baixo, porque a gravidade é imbatível, e eu fico com uma expressão de bobo no rosto.  Aquela expressão que, quando as pessoas veem, dizem: "Desmancha essa cara". (É engraçado alguém dizer isso para quem já está sentindo a cara desmanchar igual areia.)

Quando olho para trás, para o momento em que você puxou o elástico pela primeira vez, eu entendo que eu já sabia disso tudo. Todos os números estavam em seus olhos. O enunciado era bastante claro no seu jeito de falar. Sua melancolia indicava o x da questão. E isso me faz entender o motivo pelo qual eu odiava física e matemática: eu não suporto coisas exatas. Não consigo lidar com o fato de ter os números, os dados, os sinais na minha mão, juntá-los e encontrar um resultado definitivo. Tudo o que é exato me assusta, e a verdade é exata, precisa, imutável. Então eu preferi deixar o problema de lado, fingir que eu não sabia resolver, que não estava entendendo a pergunta, que não via os dados na minha cara, arriscar ficar com uma nota baixa com você.

Agora eu estou em recuperação. Não há resiliência que vá se aplicar a mim, e o Einstein ou a Fátima Bernardes que me perdoem. Mas eu me recuso a voltar a um tamanho tão pequeno de mim mesmo.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O beija-flor insistente

História melosa do dia que eu não podia deixar de compartilhar: o vizinho de uma amiga tem um daqueles bebedouros de beija-flor que as pessoas penduram na varanda de casa com água e açúcar para alimentar os pássaros. Em poucos dias, o bebedouro se tornou um verdadeiro point desses bichinhos até que, por algum motivo, o chef das aves parou de fornecer alimento. O bebedouro secou, os pássaros continuaram vindo até que entenderam que dali não sairia mais nada e desistiram. Todos menos um.

Todos os dias, faça chuva ou faça sol, o beija-flor insistente volta ao bebedouro. Senta-se na beiradinha de plástico, pula para o lado, depois para o outro, voa ao redor procurando por alguma gota de água açucarada nas flores artificiais do objeto. Depois voa, em busca de fontes de alimento abastecidas, mas uma coisa é certa: na manhã seguinte, lá está o passarinho, em uma nova tentativa frustrada.

"Por que será que ele faz isso?", minha amiga perguntou. "Com tanta flor por aí, com tanto bebedouro em outras casas, por que ele volta justamente nesse, mesmo sabendo que não terá nada ali?" A não ser que você consiga se comunicar com pássaros, é difícil encontrar uma resposta certa. Mas, sendo humanos, não é impossível imaginá-la: todos nós já fomos um beija-flor insistente algum dia.

Você sabe que não vai adiantar ligar para aquela pessoa, tentar puxar assunto, mandar uma mensagem ou sequer pensar nela. Ela não tem mais nada açucarado para te oferecer. Há outras pessoas melhores, mais interessantes, mais doces ao seu redor. Mesmo assim, você continua insistindo naquela, porque consegue se lembrar claramente o sabor que ela proporcionava e que, para você, era diferente de qualquer outro.

Ou, então, você nem chegou a provar nada de uma pessoa, simplesmente porque ela é tão seca e vazia quanto um bebedouro de pássaros esquecido por seu dono. Você a avistou de longe enquanto voava por aí, encantou-se pelas cores vibrantes das flores que ela tem e, mesmo depois de ter descoberto que eram artificiais, continua voltando a ela, esperando que algum dia ela possa ter um pouco de doçura para você.

Enfim, são incontáveis os casos em que nos comportamos exatamente como o beija-flor do vizinho da minha amiga. Mesmo sabendo que nada vai sair de lá por mais que a gente continue insistindo naquilo, a gente continua voltando, e tentando, e enfiando o bico, e dando voltas e indo embora frustrado, só para voltar mais tarde.

E como acaba essa história (não só a do beija-flor, a sua também)? Simples: ou você (e o beija-flor) insiste tanto que, em algum momento, haverá água com açúcar para saciar sua sede, ou você morre de sede (o beija-flor não, porque ele acaba agindo por instinto e procurando por outras fontes de alimento).

É assim que as coisas são. Uma hora, é preciso aceitar que não dá para esperar nada de um recipiente vazio e decidir voar para outras flores, encontrar fontes mais prováveis de alimento e, principalmente, de vida, antes que seja tarde demais.

Mas enquanto a gente não se dá conta disso, ah... Como somos irracionais e insistentes.

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