sexta-feira, 1 de março de 2013

Súbito

Aconteceu de repente, e eu não consigo pensar em nada bom que possa acontecer de repente. De repente pessoas morrem, de repente aviões caem, de repente prédios desabam.

De repente era de manhã, estava tudo estranho, talvez fosse pelo álcool da noite anterior, talvez a dor de cabeça ou o sol muito forte que faz nessa cidade, eu percebi um contorno diferente nas coisas, um tom sépia triste, eu beijei seu pescoço numa marca de sol, senti seu cheiro e foi a última vez, não consigo acreditar, foi a última vez que eu te dei um beijo, você estava de costas pra mim, mexendo no seu celular, essa memória parece tão triste agora, tão solitária, você, sua marca de sol, e foi só isso.

De repente eu sabia, sabia e não fazia a menor ideia de que seria isso, não conseguia acreditar na minha própria intuição, não fazia sentido, não era possível que você fosse terminar comigo, não tinha motivos, tinha? Eu aprendi a lidar com meus medos assim, me perguntando se eles tinham algum fundamento, alguma base em fatos reais, e dessa vez foi assim também, fiz uma análise cuidadosa dos nossos últimos dias, e tudo estava tão bem, nós assistimos àquele filme juntos, nós tomamos milk shake juntos, nós nos deitamos na minha cama e ficamos inventando versões em português para músicas americanas, você me beijou, você me abraçou e me chamou de filhote, como você sempre fazia, é horrível escrever verbos no passado para me referir a você, porque não parece que foi no passado, e parece que foi há um século, parece que foi ontem, foi há uma semana.

De repente nada fazia mais sentido. Você entrou no carro e a gente não se beijou. Você não estava falando coisa com coisa, eram só murmúrios, eu pensei que fosse só mais uma daquelas nossas discussões sem motivos bons, que iríamos ficar em silêncio por um tempo, e depois nos abraçaríamos e o mundo voltaria a fazer sentido para nós, mas não foi. Você respirou fundo... e saiu. Todas aquelas palavras, tão inacreditáveis, ele não pode estar falando sério, não pode ser verdade, ele só está bravo, ele só está cansado, talvez seja o álcool da noite anterior. Não era.

De repente eu estava em casa, não conseguia acreditar, eu chorava como se fosse morrer disso, até agora não consegui parar, existe uma outra versão de mim sem você e eu não a reconheço, não faz parte do que eu imaginei para mim, eu me olho no espelho e não sou eu, é outro cara ali, sem você, não é possível que ele realmente exista, não é possível que ele um dia vá olhar nesse espelho para arrumar o cabelo e sair de casa sem você, que ele vá escovar os dentes nesse espelho e sorrir para outra pessoa, não parece real, parece um sonho, parece uma notícia tão estranha e inacreditável, aquele tipo de coisa que você nunca pensa que vai acontecer de verdade, e já aconteceu comigo um milhão de vezes, mas dessa vez eu pensei que fosse ser diferente, pensei que você fosse ser diferente, por um momento de ingenuidade eu pensei que fosse ser para sempre.

O que eu faço com as nossas mil fotos, com nossos objetos, o que eu faço com o visor do meu celular que não acende com a foto do seu cachorro, porque você não vai mais me ligar no meio da tarde, só pra perguntar se está tudo bem, o que eu faço com nossos lugares, com meu quarto, com meu carro, onde eu jogo todas essas lembranças, onde eu encontro paz, em que abraço as coisas vão ficar bem, como é que eu vou te devolver tudo isso, seus objetos, suas fotos, seus lugares, seus abraços, como é que isso vai ficar bem agora?

O avião caiu enquanto eu lia um livro, o prédio desabou enquanto eu tomava um café, estava tudo normal, estava tudo bem, agora não está mais, eu estou aqui debaixo dos escombros, tentando entender como aconteceu, o que causou o acidente, quando foi que as coisas começaram a dar errado, em que ponto foi o defeito, e como é que eu vou fazer para sair dessa de novo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Também vivi isso.
E até hoje nem sei o porque tudo aconteceu... nunca mais o vi.

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